segunda-feira, 9 de novembro de 2015



O cartoon também é uma forma de literatura!

A Mafalda é sempre oportuna...

segunda-feira, 19 de outubro de 2015

João Villaret - Recado a Lisboa
 


Resultado de imagem para a senhora da graça
 
SENHORA DA GRAÇA


Era uma vez um homem que era casado com uma mulher, muito amiga de vinho, a

ponto de não deixar parar vinho na adega. Um dia o homem saiu para comprar uns bois e

recomendou à mulher que não fosse à adega beber o vinho. Apenas o homem virou costas, a

mulher chamou logo uma comadre e foram ambas para a adega beber o melhor pipo de vinho

que encontraram. O homem, quando voltou para casa e se achou sem o vinho, queria bater na

mulher; mas ela disse-lhe que não lhe batesse, pois estava inocente, quem tinha bebido o vinho

tinha sido a gata. Como o homem não quisesse acreditar, a mulher disse-lhe: «Pois olha,

homem, havemos de ir à Senhora da Graça, e havemos de perguntar-lhe quem foi que bebeu o

vinho, se fui eu ou a gata; se a Senhora disser que fui eu, hei de trazer-te às costas para casa, e

se eu estiver inocente hás-de tu trazer-me a mim.

Partiu o homem mais a mulher para a Senhora da Graça, e tendo chegado a um sítio

onde havia um eco, a mulher disse ao homem: «Olha, escusamos de ir mais longe; Nossa

Senhora também aqui nos ouve.» O homem então gritou com toda a força:

«Dizei-me, Senhora da Graça, quem bebeu o vinho, foi a mulher ou foi a gata?» E o eco

respondeu: «A gata».

Três vezes o homem perguntou o mesmo, e três vezes o eco lhe respondeu a gata.

O homem então, convencido de que a mulher estava inocente, levou-a às costas para casa e

matou a gata para ela não lhe ir beber mais o vinho.
(Coimbra)

segunda-feira, 12 de outubro de 2015

As amendoeiras em cada Primavera cobrem de branco e rosa Portugal, lembrando a neve dos Países do Norte, tal como descrito no conto popular Português “A Lenda das Amendoeiras em Flor”.
A lenda das amendoeiras é um conto popular muito antigo atribuído a muitas regiões do mundo tendo as suas origens mais remotas na Pérsia, Turquia e no Próximo Oriente.
Em Espanha a lenda foi atribuída às cidades de Córdova e de Sevilha, mas tudo indica que os amores de lbne-Almundim e Gilda se referem a Silves, Algarve, em Portugal.
As amendoeiras são um dos símbolos da região do Algarve, sul de Portugal e de outras regiões de Norte e a Sul (Terra Quente e Alto Douro), onde há importantes festividades anuais relacionadas com as “Amendoeiras em Flor” e esta árvore de fruto está associada à memória e à tradição cultural das terras e das gentes.
Serve de tema para livros, peças de teatro, desenhos animados, trabalhos de escolas, poemas e filmes.
Este é um filme de ficção, baseado nos acontecimentos descritos na lenda.

quinta-feira, 1 de outubro de 2015


 

 
O Homem Trocado
O homem acorda da anestesia e olha em volta. Ainda está na sala de recuperação. Há uma enfermeira do seu lado. Ele pergunta se foi tudo bem.

- Tudo perfeito - diz a enfermeira, sorrindo. 

- Eu estava com medo desta operação... 

- Por quê? Não havia risco nenhum. 

- Comigo, sempre há risco. Minha vida tem sido uma série de enganos... 
E conta que os enganos começaram com seu nascimento. Houve uma troca de bebês no berçário e ele foi criado até os dez anos por um casal de orientais, que nunca entenderam o fato de terem um filho claro com olhos redondos.

Descoberto o erro, ele fora viver com seus verdadeiros pais. Ou com sua verdadeira mãe, pois o pai abandonara a mulher depois que esta não soubera explicar o nascimento de um bebê chinês. 

- E o meu nome? Outro engano. 

- Seu nome não é Lírio? 

- Era para ser Lauro. Se enganaram no cartório e...

 Os enganos se sucediam. Na escola, vivia recebendo castigo pelo que não fazia. Fizera o vestibular com sucesso, mas não conseguira entrar na universidade. O computador se enganara, seu nome não apareceu na lista. 

- Há anos que a minha conta do telefone vem com cifras incríveis. No mês passado tive que pagar mais de R$1 3 mil. 

- O senhor não faz chamadas interurbanas? 

- Eu não tenho telefone! 

Conhecera sua mulher por engano. Ela o confundira com outro. Não foram felizes. 

- Por quê? 

- Ela me enganava. 

Fora preso por engano. Várias vezes. Recebia intimações para pagar dívidas que não fazia. Até tivera uma breve, louca alegria, quando ouvira o médico dizer: 

- O senhor está desenganado. 

- Mas também fora um engano do médico. Não era tão grave assim. Uma simples apendicite. 

- Se você diz que a operação foi bem... 

A enfermeira parou de sorrir. 

- Apendicite? - perguntou, hesitante. 

- É. A operação era para tirar o apêndice. 

- Não era para trocar de sexo?

 

 

Luís Fernando Veríssimo

 

1 Símbolo da unidade do sistema monetário do Brasil (Real)

segunda-feira, 21 de setembro de 2015

Sinceridade

Procura ser sempre sincero
contigo e com os outros.

 Aquele que tem
por hábito mentir
acabará sozinho.
 
O caminho para a verdade
A chuva que caía há dias parou finalmente nessa tarde. Um suspiro de alívio percorreu a turma toda. Os rapazes sabiam agora que o jogo de futebol, há tanto ansiosamente esperado, poderia ter lugar e já não seria cancelado por causa do mau tempo.
— Bom, às três horas no campo de jogos, mas em ponto! — diz Matias para Ricardo, ao irem juntos para casa no fim das aulas.
Ricardo abana a cabeça e murmura algo de incompreensível de cada vez que Matias dá pontapés nas pedras do caminho para ensaiar golos. Tenta acertar num tronco, numa pedra, ou até numa determinada folha de um ramo. Ricardo já não suporta esta mania. É que Matias tem tudo menos boa pontaria.
As suas brincadeiras com as pedras já tinham causado aborrecimentos que chegassem. Matias achava que era precisamente por isso que devia treinar mais. Como se dar pontapés a pedras fosse de uma importância vital!
Ainda Ricardo não tinha acabado de pensar e já se ouvia o barulho de vidros partidos: a última pedra de Matias tinha voado direitinho à janela da entrada do Sr. Gilberto. Ricardo ficou a olhá-la petrificado.
— O melhor agora é fugir! — ouviu Matias sibilar. E, com um grande salto, o autor da asneira desapareceu a correr pela rua abaixo.
Ricardo ainda estava a olhá-lo, confuso, quando sentiu que alguém o agarrava pela gola e o puxava com força. À sua frente, furioso e ofegante, estava o senhor Gilberto.
— Até que enfim que te apanhei, rapazinho! Espera lá, que te vou levar já ao teu pai, e vais ver o que te vai acontecer!
Às três horas em ponto, Matias apareceu no campo de jogos mas, por mais que procurasse Ricardo, não o encontrou.
“Afinal sempre o apanharam”, pensou Matias “e, ou assumiu ele a culpa, ou não o deixaram falar. Já é costume. O pai dele, às vezes, é muito severo.”
Matias ficou de pé, na tribuna, a olhar para o campo vazio. Combinavam quase sempre encontrar-se uma hora antes, para arranjarem um bom lugar. Mas, de um momento para o outro, Matias perdeu o entusiasmo pelo jogo. Pensava no vidro da janela, em Ricardo, e a má consciência atormentava-o. Devagar e de cabeça baixa, abandonou o campo e encaminhou-se, hesitante, para a casa dos pais de Ricardo.
Foi o pai em pessoa que lhe abriu a porta. Irado como estava, nem sequer deixou Matias falar, dizendo-lhe asperamente:
— É inútil, rapaz! O Ricardo está fechado no quarto, de castigo, a fazer os trabalhos de casa… Ele que te conte tudo na segunda-feira, na escola. Já só faltam dois dias e meio — e voltou para dentro, fechando a porta com força.
Matias voltou a tocar à campainha insistentemente e, desesperado, acabou por bater à porta com os punhos. Não podia aceitar uma injustiça daquelas. Mas ninguém se mexeu dentro de casa.
Os pensamentos atropelavam-se-lhe na cabeça.
“Muito bem”, pensava ele, “então vou contar-lhe a verdade pelo telefone. E se ele também não me deixa falar pelo telefone?”
De repente, Matias tem uma ideia e volta a correr para casa. A mãe ainda não tinha regressado do trabalho. Procurou papel de carta e um envelope, escreveu a toda a pressa umas linhas no papel e levou a carta à estação dos correios mais próxima. Mostrou ao empregado o dinheiro que lhe sobrava da semanada e perguntou:
— Chega para mandar uma carta por correio-expresso para a cidade?
— Chega e sobra, rapaz.
— E a carta é entregue agora mesmo?
O empregado olhou-o sorrindo e respondeu:
— Há fogo? Não tenhas medo, que estás com sorte. A carta pode chegar ao destino em meia-hora. Ex-cepcio-nal-mente!
Matias entregou a carta, feliz.
Uma meia hora mais tarde, o pai de Ricardo abria uma carta, entregue por um estafeta motorizado. E, admirado, leu:
Caro Sr. Pinto,
Venho, por este meio, provar-lhe que a verdade afinal consegue entrar em sua casa. Fui eu que parti o vidro da janela e vou pagá-lo com a minha próxima semanada.
Espero pela resposta em frente à sua casa.
Com os meus cumprimentos
Matias
A resposta que o pai de Ricardo mandou a Matias pesava quase 40 kg e vinha a rir-se. O pai tinha mandado o Ricardo. Assim que viu o amigo sentado à espera na soleira da porta, disse:
— Matias, tu és o maior maluco do mundo! O que tu fizeste… bem, nunca hei-de esquecer.
— Ora — resmungou Matias — não fales tanto, senão ainda perdemos também a segunda parte do jogo.
Eva Rechlin
Jutta Modler (org)
Brücken Bauen
Wien, Herder, 1987
tradução e adaptação

terça-feira, 12 de maio de 2015

A árvore da chuva


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Era uma vez uma aldeia, situada num terreno árido no meio do deserto. O sol tinha secado os seus campos e a areia invadira por completo os caminhos, as casas e as bocas dos aldeões.
Apesar do calor sufocante, os homens tentavam lavrar os campos, retirando água de um poço… cada vez mais vazio. Mas parecia que a terra não tinha mais para dar e se mantinha surda às súplicas dos habitantes da região…
Num pátio próximo das cubatas feitas de argamassa, as mulheres teciam tapetes com folhas de tamareira para vender no mercado da cidade vizinha. Partiam cedo de manhã, a pé, e um burro carregava a mercadoria. Chegavam lá apenas ao meio-dia, exaustas da longa caminhada sob o sol. Quando regressavam à aldeia era já noite, e tanto homens como crianças há muito que dormiam.
Os pés estavam gretados de percorrer tantos quilómetros, mas os sacos de arroz e os bidões de água que tinham trazido consigo, comprados com o dinheiro do seu trabalho, eram um bálsamo para as suas feridas.
Quanto às crianças, frequentavam a escola todas as manhãs, embora tivessem dificuldade de aprender com o estômago vazio.
Todos os dias os aldeões perscrutavam o céu, na esperança de que uma nuvem a anunciar chuva aparecesse. E todos os dias o poço secava cada vez mais e as colheitas de arroz diminuíam, o que aumentava o medo do que traria o dia seguinte.
Certa manhã, na pequena praça de terra vermelha, situada entre a árvore dos debates e a cubata do chefe, um grão que ninguém tinha plantado começou a germinar. Era um rebentozinho verde e tenro, redondinho como um bebé bem alimentado. Foi Kodjo o primeiro a vê-lo. O rapaz ia a caminho da escola quando avistou a pontinha verde a emergir da terra. Orgulhosa e altaneira, parecia buscar a luz do sol. Kodjo parou, observou-a e alertou a aldeia inteira.
Em breve, todos os homens, mulheres e crianças se agruparam em torno da planta.
— É uma bananeira — disse um homem.
— É um coqueiro — disse outro.
— É uma tamareira — disse um terceiro.
— Seja lá o que for — disse o chefe. — Esta planta vai dar-nos comida e água, se tomarmos conta dela. O Kodjo fica responsável pelo seu cuidado. Os outros vão buscar a água que nos resta.
Quando trouxeram a água, o jovem, orgulhoso, deitou as primeiras gotas na terra seca. No dia seguinte, o rebento tomara a forma de uma pequena planta que ondulava com o vento, indiferente ao sopro quente do sol. Kodjo sussurrou-lhe algumas palavras de encorajamento enquanto voltava a regar o pé do seu pequenino tronco com o líquido precioso.
Alguns dias mais tarde, a planta assemelhava-se já a uma árvore do tamanho de uma pequena girafa. Parecia um verdadeiro milagre no meio do deserto, com as ramagens verdes e tenras a procurarem o céu.
Os aldeões dançaram e cantaram para agradecer aos antepassados. Também abraçaram o troco da árvore e depuseram oferendas a seus pés, tais como óleo de palma e pedras raras.
Ao fim de algumas semanas, a árvore estava mais alta do que as cubatas e era tão larga como um elefante. Os aldeões gostavam de repousar à sua sombra, nas horas em que o sol ia mais alto. As crianças aprendiam mais facilmente junto dela e as mulheres teciam panos a cantar, como se a chuva não fosse demorar.
Mas um dia, ao cair da tarde, algo de muito estranho aconteceu. Tão estranho que ainda hoje os livros o relatam.
O sol acabava de desaparecer por detrás das dunas de areia e a árvore balouçava docemente com o sopro morno do vento. De repente, começou a escorrer o que parecia ser água. Dos ramos e das folhas começaram a chover gotas grossas que, estranhamente, se assemelhavam a água.
Bastante desconfiados, os aldeões aproximaram-se dela e recolheram algumas gotas com as mãos em concha. O chefe da aldeia levou-as à boca, franziu as sobrancelhas grossas e escuras, remexeu a língua, passou-a pelos lábios e declarou:
— É água!
Toda a aldeia se reuniu em torno da árvore, batizada então com o nome de “árvore da chuva”. A água corria pelos rostos das pessoas e fazia brotar sorrisos dos lábios. Entrava nas bocas desejosas de a receber e humedecia as línguas secas. Ao deslizar pelos braços e pelas pernas, limpava a poeira dos caminhos há muito acumulada.
A fim de honrar a árvore da chuva, os aldeões fizeram uma grande festa. Houve arroz com fartura, água açucarada e bolos de mandioca. Kodjo não se lembrava de ter comido ou bebido tanto! Nessa noite, todos se deitaram de estômago cheio. A árvore deixou de escorrer água ao nascer do sol, mas ninguém se preocupou: mal a noite começasse a cair, de certeza que haveria de novo água…
E assim foi. Os homens regressaram com afinco aos campos e as mulheres puseram-se de novo a sachar e a semear. As crianças iam para a escola a cantar e quase já sabiam ler.
A aldeia tinha reencontrado a serenidade.
Até ao dia em que um homem da aldeia vizinha os visitou.
Acabava de anoitecer e a árvore distribuía a sua água tão generosamente como sempre. O homem, que estava cheio de sede, parou, observou e não acreditou no que via. No dia seguinte, trouxe dois recipientes e começou a enchê-los. Quando o viu, o chefe da aldeia ordenou-lhe que fosse embora.
— A nossa aldeia morre de sede e de fome — queixou-se o estranho. — Os nossos filhos têm a barriga vazia e as nossas mulheres só têm pele e osso. Como as mães não têm leite, os bebés choram de manhã à noite. Estamos a ficar sem ânimo.
— Isso não me preocupa — disse o chefe, que era rancoroso. — A vossa aldeia tem a memória curta. Ainda há poucos meses, os vossos aldeões pilhavam sem escrúpulos os restos das nossas colheitas e pouco se importavam que passássemos fome. Vai-te embora e não voltes a aproximar-te da árvore da chuva.
O homem rumou em direção a casa, com os recipientes vazios.
No dia seguinte, Kodjo foi regar a árvore, que nenhuma necessidade tinha de água. Quando se aproximou da praça de terra vermelha, nem queria acreditar no que via: no lugar onde estivera a árvore, via-se agora um buraco. A árvore da chuva tinha desaparecido!
Kodjo correu a alertar os habitantes da aldeia, que se agruparam em torno do buraco. As mulheres desataram a soluçar e os homens lançaram gritos estridentes. No meio do desespero geral, o chefe exclamou:
— Roubaram a nossa árvore! A nossa vingança será terrível! Sigam-me!
A aldeia em peso pôs-se a caminho da aldeia vizinha. Embora seja má conselheira, a cólera dá força e coragem e, assim, os aldeões caminharam tão rapidamente que em breve avistaram as cubatas da aldeia vizinha.
— Olhem! — ordenou o chefe, designando com a mão as casas dos inimigos. — Ainda dormem, mas não por muito mais tempo.
Os rostos espelhavam ódio e vingança e estavam dispostos a usar as facas afiadas que tinham trazido consigo. À medida que se aproximavam da aldeia, avistaram ao longe a árvore da chuva. Majestosa e altiva, erguia os ramos na direção do céu. Estava viçosa como na véspera.
— Como chegou ela aqui? — exclamou Kodjo. — Uma árvore não caminha…
— Esperem por mim! — disse o chefe de forma autoritária.
Os aldeões viram-no caminhar em direção à aldeia vizinha. Quando regressou, vinha acompanhado pelo outro chefe, que lhe explicava que só os deuses conseguiam fazer as árvores andar. Se tivessem sido os aldeões vizinhos a roubá-la, nunca a teriam plantado a meio do caminho, mas sim na sua própria aldeia. As suas palavras sensatas aplacaram a cólera dos homens sedentos de vingança.
Quando a noite caiu, os habitantes das duas aldeias muniram-se de baldes, panelas e bacias e encaminharam-se para a árvore da chuva. Os olhares sombrios faziam adivinhar o ódio e via-se o cintilar das facas afiadas.
Mas da árvore não escorreu água. As folhas, os ramos e o tronco continuaram tão secos como a terra.
Desesperados, os habitantes das duas aldeias regressaram a casa sem trocar palavra.
Passaram-se semanas e passaram-se meses, e a árvore continuou seca. Contudo, todos os dias, ao cair da tarde, os habitantes das duas aldeias encontravam-se sempre junto dela, à espera de um milagre.
Certo dia, uma mulher deu à luz perto dela e as mulheres da aldeia vizinha trouxeram panos e água. Depois, cantaram canções de embalar e acolheram a criança como se fosse sua.
Pouco a pouco, começaram a conhecer-se melhor uns aos outros, partilharam refeições e as crianças tornaram-se amigas. As mulheres teciam tapetes em conjunto e iam vendê-los ao mercado. Partilhavam também água e arroz. Em breve as duas aldeias pareciam apenas uma. Todos os dias, ao cair da tarde, os aldeões cantavam e rezavam juntos.
Sentados debaixo da árvore, chegavam mesmo a esquecer que estavam à espera de chuva…
E foi então que, uma noite, quando já ninguém o esperava, a árvore voltou a escorrer água, como se houvesse nuvens no céu…
Agnès de Lestrade
L’arbre à pluie
Paris, Milan Jeunesse, 2009
(Tradução e adaptação)https://contadoresdestorias.wordpress.com/2015/02/13/a-arvore-da-chuva/
 

A velhinha que dava nomes às coisas


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Era uma vez uma velhinha que adorava dar nomes às coisas.
Chamava Betsy ao velho carro que conduzia.
Chamava Fred à velha cadeira onde se sentava.
Chamava Roxane à velha cama onde dormia.
Chamava Franklin à velha casa onde vivia.
E todas as manhãs saía da Roxane, bebia uma chávena de chocolate no Fred, fechava o Franklin, ia aos correios na Betsy. Estava sempre à espera de uma carta, mas só recebia contas para pagar.
Não recebia cartas porque todos os seus amigos já tinham falecido, o que a deixava preocupada. Não lhe agradava a ideia de ser uma velhinha solitária, sem amigos, sem alguém a quem pudesse recorrer.
Então, começou a dar nomes às coisas. Mas só às coisas que sabia que não iriam acabar. O seu carro Betsy tinha circulado mais do que outro qualquer. A sua cadeira Fred nunca empenou na vida. E nem um rangido, nem um gemido ouviu nunca da sua cama, Roxane. E a sua casa, Franklin, continuava de pedra e cal: com mais de cem anos parecia ter pouco mais de vinte.
A velhinha já não se preocupava em sobreviver a qualquer um deles… e vivia feliz.
Certo dia, estava a tirar lama da Betsy, dizendo-lhe que o Franklin não ia gostar de a ter à porta com os guarda-lamas sujos, quando um cãozinho castanho se aproximou timidamente do portão. (A velhinha não tinha dado nome ao portão porque as dobradiças tinham ferrugem e o portão iria durar pouco tempo.) O cãozinho abanava o rabo e parecia ter fome. A velhinha estava ao lado da Betsy e pôs-se a observá-lo por um momento.
— Hmmm — fez ela.
Então, entrou no Franklin, tirou do frigorífico um pouco de fiambre e saiu novamente. Deu o fiambre ao cachorrinho esfomeado e mandou-o embora.
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Disse-lhe que os cachorrinhos enjoavam sempre na Betsy, que o Fred não permitia que se sentassem nele e a Roxanne era demasiado pequena para um cachorrinho e uma velhinha dormirem nela. E que, além disso, o Franklin era alérgico a pelo de cão.
Por isso o cachorrinho foi-se embora.
Mas, no dia seguinte, regressou. A velhinha estava sentada no Fred a ler um livro sobre flores de jardim, quando olhou pela janela e viu o cachorro.
— Vai para casa! — disse-lhe.
O cachorrinho abanou o rabo quando a viu.
— Vai para casa! — disse novamente.
Mas o cachorrinho continuava a abanar o rabo.
A velhinha reparou que ele ainda parecia ter fome. Por isso foi de novo ao frigorífico.
Deu ao cachorrinho um pouco de queijo e dois biscoitos.
E depois disse-lhe para se ir embora.
E ele assim fez.
Naquela noite, enquanto ajeitava as almofadas na Roxanne, a velhinha pensou no cachorro…. Era um cachorrinho muito simpático e bonito. Mas não podia ficar com ele. Se ficasse, teria de lhe pôr um nome. E ele arriscava-se a não viver tanto como o Franklin, o Fred, a Betsy ou a Roxanne. Muito provavelmente morreria primeiro do que ela… E ela não queria correr esse risco. Não queria ver os seus amigos morrerem.
Pedir-lhe-ia para se ir embora.
Mas todos os dias o cachorrinho castanho vinha até ao portão da velhinha. E todos os dias ela dava-lhe comida e dizia-lhe para não voltar. E ele ia e voltava sempre no dia seguinte.
E assim se passaram muitos meses.
O cachorrinho cresceu, cresceu e, em pouco tempo, deixou de ser um cachorrinho.
Agora era um cão. E continuava a ser um cão sem nome.
Entretanto, a velhinha comprara um armário a que chamou Bill, um carrinho de mão a que pôs o nome Francine e um porco em barro para o jardim a que chamou Bud.
Mas o cão que ela fielmente alimentava todos os dias ao portão não tinha nome.
E, uma vez que não tinha nome, a velhinha não se afligia com ele…
Mas, um dia, o cão castanho não apareceu. A velhinha estava sentada no Fred e passou o dia a olhar para o portão. Mas o cão nunca chegou. E ela ficou triste.
No dia seguinte, o cão também não apareceu. A velhinha pegou na Betsy e foi à procura dele, mas não o encontrou. E ficou ainda mais triste. O cão continuou a não aparecer e a velhinha decidiu que tinha de fazer alguma coisa.
Pegou no telefone e ligou para o canil.
— Apanharam algum cão castanho? — perguntou ao funcionário.
— Temos o canil cheio de cães castanhos, minha senhora, — respondeu-lhe ele. — O seu tinha uma coleira com o nome?
— Não — respondeu a velhinha com tristeza.
E desligou o telefone.
Então sentou-se e pensou no cão castanho que não tinha coleira nem nome.
Onde quer que estivesse, ninguém saberia dizer que ela o esperava todos os dias ao portão; que lhe daria comida e depois lhe diria para se ir embora; que era assim que tudo deveria acontecer.
O tímido cão não tinha coleira nem nome. E ninguém haveria de saber dele.
A velhinha tomou então uma decisão.
Fechou o Franklin e conduziu a Betsy até ao canil. Aí, dirigiu-se ao funcionário.
— Vim buscar o meu cão.
Ele perguntou-lhe de que cor era.
— É castanho — respondeu.
Depois ele quis saber a idade.
— Tem cerca de um ano — respondeu a velhinha.
E ele quis saber qual era o nome dele.
A velhinha pensou durante um instante. Pensou em todos os seus velhos amigos que tinham falecido e lembrou-se dos seus nomes queridos. Como fora feliz por os ter conhecido! E achou que era uma mulher cheia de sorte.
— Chama-se Lucky — disse ao funcionário.
Ele levou-a então a um pátio cheio de cães brancos, pretos e castanhos. A velhinha olhou, olhou e olhou, até que descobriu o seu cão castanho sentado junto do portão. O cão olhava para a Betsy que estava estacionada na entrada.
A velhinha chamou-o.
— Vem, Lucky!
E ao ouvir a voz dela, o cão veio a correr.
A partir daquele dia, Lucky viveu com a velhinha, e vinha sempre quando ouvia o seu nome. Entretanto, descobriu-se que, afinal, nem todos os cães enjoavam na Betsy; que o Fred ficava feliz por o Lucky se sentar nele e que o Franklin não era alérgico a pelo de cão.
E todas as noites a cama Roxanne certificava-se de que havia espaço suficiente para um cão castanho, tímido e feliz … e para uma velhinha que lhe deu um nome.
la
Cynthia Rylant
The old woman who named things
New York, Voyager Books, 2000
(Tradução e adaptação)

Não sou um super-herói!


la
Tenho seis anos.
Estou no meu quarto.
As paredes são cor de laranja, gosto mesmo dessa cor.
Foi o meu pai que colocou o papel de parede.
A minha mãe costuma gritar muito alto. O meu pai também.
Os gritos fazem-me sempre medo, muito medo.
Ouço outros barulhos, acho que começaram a bater um no outro.
Nunca ouvi a minha mãe gritar assim.
Queria ir lá ver, queria que parassem, mas fico muito quieto na cama.
A minha mãe entra aos gritos no meu quarto, o meu pai veio atrás dela.
Ela quer que eu a proteja.
Ele agarra-a pelos cabelos e começa a puxá-la para fora do quarto.
Ela cai e ele dá-lhe pontapés. Até na cara.
Começo também a gritar.
Quero muito que ele pare, tem de parar!
Por vezes, vou ao parque com o meu pai e jogamos à bola.
O meu pai dá pancadas na bola. Eu sou pequeno e a bola é muito grande.
O meu pai é como esta bola. Tem muita força.
Admiro-o por ser assim, e é assim que quero ser, também.
Costumo rir-me com ele.
Já tenho sete anos e os meus pais divorciaram-se.
A minha mãe explicou-me isso no comboio, quando vínhamos de férias.
O meu pai já não ficará a viver connosco.
Para me consolar, a minha mãe comprou-me um gato.
No entanto, os meus pais continuam a encontrar-se e, uma destas manhãs, estavam umas botas à porta do quarto da minha mãe.
Eram as botas do meu pai.
Eles já não estão juntos, mas eu vejo as botas à porta do quarto.
Saí para a escola, vi as botas, mas não vi o meu pai.
Tenho um medo terrível durante a noite.
Não posso ver a luz do corredor apagada, nem fechar a porta, se não, os monstros aparecem.
Houve uma noite em que vi uma caveira debaixo da minha cama.
A minha mãe contou-me que, quando eu era bebé, alguém me bateu.
Não me lembro disso.
Mas talvez seja essa a razão para eu ter sempre tanto medo.
As armas é que me acalmam e tenho sempre uma pistola de brincar comigo.
Faço de conta que a minha pistola é a sério e que ninguém pode fazer-me mal.
Até tenho uma debaixo da travesseira, como se vê nos filmes da TV.
Na escola disseram à minha mãe que eu não podia ir para as aulas com as minhas pistolas,
e ela proibiu-me de as levar.
Mas eu escondo-as e levo-as na mesma.
O meu pai já tem outra mulher.
Na casa dele, não há quarto para mim. Durmo num colchão a um canto, junto a umas malas vazias.
Aqui, não tenho medo dos monstros, porque eles não têm onde se esconder.
E depois há sempre barulhos e luz.
No meu cantinho, invento histórias terríveis de batalhas com os meus brinquedos.
Há sempre muitos mortos e heróis intocáveis.
Quando fiz nove anos, o meu pai deu-me um robô americano. É o melhor brinquedo do mundo! É muito grande e sai-lhe luz dos olhos e do laser intergaláctico.
Foi comprado numa loja que só vende robôs.
Foi um dia magnífico.
Imagino-me com superpoderes.
Sei voar, sou muito forte e nada me assusta.
Defendo os mais fracos. Todos gostam de mim, exceto, claro, os mesmo muito maus.
Com esses terei de ser muito firme.
De manhã, não vi uma garrafa de vinho vazia.
Ao cair, fez barulho e acordou o meu pai.
Ele ficou furioso e veio para a cozinha atrás de mim.
Tentando escapar-lhe, derrubei outras garrafas. Agora é que vou apanhar.
É assim: às vezes grita e bate-me. Depois fica triste como se lhe doesse a ele, e pede-me desculpa com um ar muito magoado.
Quando o vejo chorar, acho que é por minha causa que ele fica triste.
Então, sinto-me culpado ao vê-lo assim.
Mas não é assim, a culpa não é minha.
Sou apenas uma criança e não tenho nada com os problemas dos adultos.
Gosto dele e não quero magoá-lo, mas ele deixa-me assustado.
Um dia, também hei de ser grande e ninguém poderá magoar-me.
Ninguém me fará medo.
Vou defender todas as mães e todas as crianças…
E, nessa altura,
… Serei um SUPER-HERÓI !
Julien Josset ; Gilles Rapaport
Je ne suis pas un super héros
Paris, Circonflexe, 2004
(Tradução e adaptação)
https://contadoresdestorias.wordpress.com/2015/01/20/nao-sou-um-super-heroi/

 

Um projecto especial


Desejando passar mais tempo com a família, um velho empregado da construção civil informou o dono da empresa onde trabalhava da sua vontade de se reformar. Embora a empresa não fosse afetada por esta saída, o dono sentiu pena de ver um tão bom funcionário partir e pediu-lhe que trabalhasse num último projeto.
O homem concordou mas, como não se sentia entusiasmado com a ideia, construiu uma casa de qualidade inferior, na qual empregou materiais desadequados.
Quando o projeto ficou concluído, o patrão foi fazer a vistoria da casa. Finda a inspeção, entregou a chave da habitação ao empregado e disse:
— Esta casa é para si, como prenda pela sua dedicação de inúmeros anos à empresa.
O empregado ficou deveras surpreendido e pensou para consigo, “Se eu soubesse que a casa iria ser para mim, tê-la-ia construído de forma diferente.”
Muitos de nós vão construindo a sua vida ficando sempre aquém do seu melhor. É com surpresa que nos damos conta, mais tarde, de que temos de viver na casa que construímos.
 Autor Desconhecido
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terça-feira, 13 de janeiro de 2015


A cerejeira da lua
A Lua fita-nos quando a fitamos? Não. Nunca. Se a chamarmos deste canto da Terra, a Dama Toda Branca embuça-se de mistério e faz de conta que é a Bela Adormecida. Presunçosa.
Como se toda a gente não soubesse que a Lua deixou de ser inacessível. Botas memoráveis pisaram-lhe a superfície desolada. Satélites zumbem à sua volta. Telescópios potentíssimos perscrutam-lhe todos os socalcos, rugas e verrugas.
A Lua é a nossa vizinha defronte. E, ao perto, nada bonita, por sinal.
Quem se atreve a dizer-lho? Não contem comigo.
Aliás, pouco importa. Ela que nos ignore. Que dirija a atenção para a distância azul da noite. Que recorde outros tempos, antigas glórias. Que sonhe. Deixem-na sonhar.
Entre muitas evocações mimosas, a Lua sonha com o imperador Meng Uóng, que dela se enamorou. Onde isso vai…
Numa das varandas do palácio imperial, ornamentada de gaiolas de ouro, Meng Uóng, tocado pela tristeza do crepúsculo, dá de comer às cotovias.
O sábio Tien-O-Tzê segue-o em silêncio como uma sombra protectora. Foi seu aio, depois seu mestre.
Introduziu-o no segredo dos cultos, interpretou, um por um, para ilustração do jovem imperador, todos os conselhos do Livro dos Veneráveis e pacientemente guiou-lhe a mão inábil de menino sobre o desenho das primeiras letras gravadas em tabuinhas de sândalo.
Brilha o esmalte das colunas à luz dos archotes. Criados de sandálias sussurrantes varrem com leques de penas de pavão o fumo do ar à roda do imperador. Um perfume adocicado de ervas preciosas evola-se dos turíbulos mansamente agitados pela brisa do princípio da noite.
Uma pena cinzenta de cotovia esvoaça e como que hesita entre a varanda e o escuro do jardim. Tocada por um raio do luar, parece de prata.
Isto mesmo diz o imperador, pensativo, enquanto acompanha o devanear da pena que, depois, se perde por entre a ramagem dos sicômoros.
— Tudo à nossa volta aspira à perfeição — comenta o sábio Tien-O-Tzê.
O imperador suspira:
— Até uma pena de cotovia…
— Até uma pena de cotovia — repete o sábio.
— Não será um sinal, um aviso da Lua? — pergunta o imperador, subitamente ansioso.
O sábio permite-se sorrir.
— Se Vossa Majestade assim o quer, será — diz, cofiando a barbicha branca e encerada que lhe escorrega até à cintura.
Descem da varanda ao jardim alumiado por grandes lanternas de pétalas roxas. Suspensas, rente ao chão, as lanternas tudo convertem à cor dos sonhos mais imprevisíveis. A relva, as ramagens baixas dos arbustos e os pés do imperador e do mestre ficam aureolados de roxo e lilás. Parece que caminham sobre nuvens.
Porque o sábio não desaproveita uma oportunidade sem retirar um ensinamento que sirva de alimento espiritual ao jovem imperador, logo acrescenta mais esta fala:
— Um vosso antepassado, o erudito e judicioso imperador La-Long, escreveu na base de uma estatueta de jade, que representava um monge de pálpebras descidas, um luminoso pensamento: O inatingível está à tua mercê. Queres que os teus desejos aconteçam? Fecha os olhos.
Proferidas estas palavras graves, o sábio Tien-o-Tzê, apoiado a um tronco nodoso de cerejeira que lhe serve de bordão, suspende os passos. Fecha os olhos.
Encara-o, surpreendido o imperador.
— Estás a desejar alguma coisa? — pergunta.
O sábio abre os olhos:
— Os meus desejos são os vossos, Majestade. Procurava apenas adivinhá-los.
— E descobriste-os?
Tien-O-Tzê, em resposta, ergue o bordão e aponta-o à Lua, redonda e enorme, que subia ao céu, logo por trás dos últimos sicômoros do jardim.
— Tens razão, genial amigo — exclama, entusiasmado, o imperador. — Quero ir à Lua.
— Pois irá — proclama o sábio. — Segure, Vossa Majestade, o arrocho de cerejeira a que me arrimo para as pequenas e grandes caminhadas da vida… Cerre os olhos.
O imperador, habituado a confiar no mestre, corresponde ao mandado.
— Este bordão, que ambos seguramos, há-de levar-nos à Lua — brada, num acesso de inesperada força, o sábio ou mago Tien-O-Tzê. — Não abra os olhos, Majestade, que eu vou lançar o bordão ao céu.
O imperador Meng Uóng, de pálpebras apertadas, sente, num arrepio, que os pés, calçados com finas babuchas escarlates debruadas a pérolas, se soltam do solo e divagam no vazio como se os tivesse suspensos de um baloiço.
— Não abra os olhos, Majestade — torna a recomendar-lhe Tien-O-Tzê.
A voz dele ressoa em eco, repercutida por toda a abóbada celeste:
— Não abra… não abra… não abra os olhos, Majestade…
Vão longe? Vão perto? Por onde voga o bordão a que sábio e imperador se fincam como náufragos que rodopiassem no turbilhão de uma tempestade silenciosa? O imperador pergunta e não quer achar resposta.
Um vento ciclónico e cada vez mais frio encortiça-lhe o rosto crispado. É insuportável. Manter os olhos fechados, agora, não custa. Mais custaria abri-los. O vento pacifica-se em aragem. O frio em amenidade.
Aos ouvidos do jovem imperador soam, primeiro indistintamente, depois mais nítidos, os acordes de guitarras e vozes femininas, numa fresca melopeia de boas-vindas. De súbito, os pés encontram chão.
— Pode abrir os olhos, Majestade — comanda o sábio numa entoação de riso.
Ah! eis a Lua! A seu lado, Tien-O-Tzê recupera só para ele a vara de cerejeira e enterra-a no musgo esbranquiçado do solo lunar, fofo e macio, que dá a cada passo uma cadência de dança.
Talvez por isso as jovens que acorrem a receber os visitantes, vestidas com túnicas de cores celestes, têm um andar precioso de dançarinas rituais. Agitam leques, cantam e riem como sinos de porcelana.
— Para onde nos levam? — pergunta, aturdido, o imperador, que pela primeira vez sente o peso da sua túnica de brocado azul onde fulgem dois dragões de oiro.
Elas rodeiam-nos e empurram-nos brandamente enquanto tangem alaúdes.
Levados pelo redemoinho da festa, o imperador e o sábio distanciam-se do lugar onde tinham poisado. Sobem agora uma escadaria de marfim onde, no alto, luminosa, os espera…
— Seong-Ngá, a castelã da Lua — exclama Tien-O-Tzê, reconhecendo-a ao primeiro relance.
O sábio não errara. Seong-Ngá reina sobre as selenitas. Ela, que se refugiara na Lua enquanto o seu esposo, Hau-Ngai, se exilara no palácio do Sol, ora toma a configuração de uma rã de três pernas, ora se ostenta em toda a sua beleza de imortal.
Felizmente que, para receber as visitas, não apareceu sob a forma de batráquio, o que seria deselegante. Sentada num trono de coral, rodeada de fadas dançarinas, Seong-Ngó não profere uma única palavra, mas eles percebem pelo brilho dos seus olhos maliciosos tudo o que ela tem para lhes contar.
Com um gesto insinuante, rodopiando o leque, Seong-Ngó aponta para o cimo de uma colina próxima, onde o coelho de jade, diante do almofariz, prepara incansavelmente o remédio contra todos os males. É o elixir da imortalidade. A guardiã da Lua parece dizer:
“Querem provar? Apressem-se…”
Sábio e imperador descem, em corrida, a escadaria e precipitam-se para a colina. Esquecidos das regras de reverência, nem agradeceram a generosidade do convite.
Antes de alcançarem o coelho, na sua oficina de alquimista, têm de passar por um desfiladeiro obscuro. Cessaram os cânticos de saudação. Sábio e imperador vão sós e estremecem quando lhes chega às narinas um odor áspero de animal feroz, no seu refúgio.
Logo em seguida um rugido e, após este, outro e outro ainda, todos assustadores. Um tigre cinzento e branco assoma ao outro extremo do desfiladeiro. Revira os olhos rancorosos e vai saltar sobre os dois viajantes.
— Fujamos — grita, apavorado, o imperador Meng Uóng. — O teu bordão, onde o deixaste?
— Longe — responde-lhe o sábio, que já corre à frente do príncipe.
Tien-O-tzê, pela primeira e única vez na vida olvidou, naquele transe, as precedências da etiqueta e o comedimento a que a sua provecta idade obrigaria.
Os pés afundam-se no musgo como na neve, o que lhes prejudica o despacho da corrida. Sentem sobre as costas o hálito em fogo do tigre implacável…
— Feche os olhos, Majestade. O sonho mau vai passar.
À voz entrecortada do sábio responde o imperador, aflito:
— E aonde me agarro desta vez?
O sábio, sem parar de correr, grita num assomo de impaciência:
— Agarre-se à minha mão — enquanto lha estende. — Acabo de descobrir a raiz de um raio de luar que nos levará até à Terra.
— Aguentará o nosso peso? — teme o imperador.
O sábio repete, soluçando de cansaço, a máxima de La-Long:
— Queres… que os teus desejos… aconteçam? Fecha… os olhos. Acredite… acredite, Majestade!
Mas o imperador duvida:
— E o tigre? O tigre não virá atrás de nós?
— O tigre não conhece a máxima e não fecha os olhos — exaspera-se Tien-O-Tzê. — O tigre tem medo de cair. Nós não!
De olhos fechados, escorregam pelo raio de luar que se arqueia e alarga até parecer uma estrada de descida suave.
Assim, sem sobressalto, chegam ao jardim imperial. A Lua escondeu-se. Os archotes da varanda ardem, inúteis, à luz da madrugada.
Desde essa noite inesquecível que o imperador Meng Uóng tange o alaúde, evocando as melodias que ouviu das selenitas.
E, entusiasmado pelos bailados e cânticos das fadas lunares, criou uma escola, num pavilhão, no meio de um pomar de pereiras.
Aí, os jovens do palácio foram industriados na arte de dançar e cantar como os habitantes da Lua.
Assim é justificada a origem do teatro chinês e o nome Lei-Un-Tchi-Tâl, “discípulos do pomar das peras”, como são designados os seus actores.
Quanto ao bordão de cerejeira que o sábio Tien-O-Tzê plantara na superfície musgosa da Lua, conta a lenda que ganhou ramos, folhas, flores…
Quem quiser ver a cerejeira, que olhe para a lua na noite que precede o décimo quinto dia do oitavo mês lunar, segundo o calendário chinês.
Se não conseguir ver, feche os olhos. No espelho da imaginação tudo acontece como queremos…
António Torrado
A cerejeira da Lua
Instituto cultural de Macau, Editorial Pública, Lda, 1990