terça-feira, 13 de janeiro de 2015


A cerejeira da lua
A Lua fita-nos quando a fitamos? Não. Nunca. Se a chamarmos deste canto da Terra, a Dama Toda Branca embuça-se de mistério e faz de conta que é a Bela Adormecida. Presunçosa.
Como se toda a gente não soubesse que a Lua deixou de ser inacessível. Botas memoráveis pisaram-lhe a superfície desolada. Satélites zumbem à sua volta. Telescópios potentíssimos perscrutam-lhe todos os socalcos, rugas e verrugas.
A Lua é a nossa vizinha defronte. E, ao perto, nada bonita, por sinal.
Quem se atreve a dizer-lho? Não contem comigo.
Aliás, pouco importa. Ela que nos ignore. Que dirija a atenção para a distância azul da noite. Que recorde outros tempos, antigas glórias. Que sonhe. Deixem-na sonhar.
Entre muitas evocações mimosas, a Lua sonha com o imperador Meng Uóng, que dela se enamorou. Onde isso vai…
Numa das varandas do palácio imperial, ornamentada de gaiolas de ouro, Meng Uóng, tocado pela tristeza do crepúsculo, dá de comer às cotovias.
O sábio Tien-O-Tzê segue-o em silêncio como uma sombra protectora. Foi seu aio, depois seu mestre.
Introduziu-o no segredo dos cultos, interpretou, um por um, para ilustração do jovem imperador, todos os conselhos do Livro dos Veneráveis e pacientemente guiou-lhe a mão inábil de menino sobre o desenho das primeiras letras gravadas em tabuinhas de sândalo.
Brilha o esmalte das colunas à luz dos archotes. Criados de sandálias sussurrantes varrem com leques de penas de pavão o fumo do ar à roda do imperador. Um perfume adocicado de ervas preciosas evola-se dos turíbulos mansamente agitados pela brisa do princípio da noite.
Uma pena cinzenta de cotovia esvoaça e como que hesita entre a varanda e o escuro do jardim. Tocada por um raio do luar, parece de prata.
Isto mesmo diz o imperador, pensativo, enquanto acompanha o devanear da pena que, depois, se perde por entre a ramagem dos sicômoros.
— Tudo à nossa volta aspira à perfeição — comenta o sábio Tien-O-Tzê.
O imperador suspira:
— Até uma pena de cotovia…
— Até uma pena de cotovia — repete o sábio.
— Não será um sinal, um aviso da Lua? — pergunta o imperador, subitamente ansioso.
O sábio permite-se sorrir.
— Se Vossa Majestade assim o quer, será — diz, cofiando a barbicha branca e encerada que lhe escorrega até à cintura.
Descem da varanda ao jardim alumiado por grandes lanternas de pétalas roxas. Suspensas, rente ao chão, as lanternas tudo convertem à cor dos sonhos mais imprevisíveis. A relva, as ramagens baixas dos arbustos e os pés do imperador e do mestre ficam aureolados de roxo e lilás. Parece que caminham sobre nuvens.
Porque o sábio não desaproveita uma oportunidade sem retirar um ensinamento que sirva de alimento espiritual ao jovem imperador, logo acrescenta mais esta fala:
— Um vosso antepassado, o erudito e judicioso imperador La-Long, escreveu na base de uma estatueta de jade, que representava um monge de pálpebras descidas, um luminoso pensamento: O inatingível está à tua mercê. Queres que os teus desejos aconteçam? Fecha os olhos.
Proferidas estas palavras graves, o sábio Tien-o-Tzê, apoiado a um tronco nodoso de cerejeira que lhe serve de bordão, suspende os passos. Fecha os olhos.
Encara-o, surpreendido o imperador.
— Estás a desejar alguma coisa? — pergunta.
O sábio abre os olhos:
— Os meus desejos são os vossos, Majestade. Procurava apenas adivinhá-los.
— E descobriste-os?
Tien-O-Tzê, em resposta, ergue o bordão e aponta-o à Lua, redonda e enorme, que subia ao céu, logo por trás dos últimos sicômoros do jardim.
— Tens razão, genial amigo — exclama, entusiasmado, o imperador. — Quero ir à Lua.
— Pois irá — proclama o sábio. — Segure, Vossa Majestade, o arrocho de cerejeira a que me arrimo para as pequenas e grandes caminhadas da vida… Cerre os olhos.
O imperador, habituado a confiar no mestre, corresponde ao mandado.
— Este bordão, que ambos seguramos, há-de levar-nos à Lua — brada, num acesso de inesperada força, o sábio ou mago Tien-O-Tzê. — Não abra os olhos, Majestade, que eu vou lançar o bordão ao céu.
O imperador Meng Uóng, de pálpebras apertadas, sente, num arrepio, que os pés, calçados com finas babuchas escarlates debruadas a pérolas, se soltam do solo e divagam no vazio como se os tivesse suspensos de um baloiço.
— Não abra os olhos, Majestade — torna a recomendar-lhe Tien-O-Tzê.
A voz dele ressoa em eco, repercutida por toda a abóbada celeste:
— Não abra… não abra… não abra os olhos, Majestade…
Vão longe? Vão perto? Por onde voga o bordão a que sábio e imperador se fincam como náufragos que rodopiassem no turbilhão de uma tempestade silenciosa? O imperador pergunta e não quer achar resposta.
Um vento ciclónico e cada vez mais frio encortiça-lhe o rosto crispado. É insuportável. Manter os olhos fechados, agora, não custa. Mais custaria abri-los. O vento pacifica-se em aragem. O frio em amenidade.
Aos ouvidos do jovem imperador soam, primeiro indistintamente, depois mais nítidos, os acordes de guitarras e vozes femininas, numa fresca melopeia de boas-vindas. De súbito, os pés encontram chão.
— Pode abrir os olhos, Majestade — comanda o sábio numa entoação de riso.
Ah! eis a Lua! A seu lado, Tien-O-Tzê recupera só para ele a vara de cerejeira e enterra-a no musgo esbranquiçado do solo lunar, fofo e macio, que dá a cada passo uma cadência de dança.
Talvez por isso as jovens que acorrem a receber os visitantes, vestidas com túnicas de cores celestes, têm um andar precioso de dançarinas rituais. Agitam leques, cantam e riem como sinos de porcelana.
— Para onde nos levam? — pergunta, aturdido, o imperador, que pela primeira vez sente o peso da sua túnica de brocado azul onde fulgem dois dragões de oiro.
Elas rodeiam-nos e empurram-nos brandamente enquanto tangem alaúdes.
Levados pelo redemoinho da festa, o imperador e o sábio distanciam-se do lugar onde tinham poisado. Sobem agora uma escadaria de marfim onde, no alto, luminosa, os espera…
— Seong-Ngá, a castelã da Lua — exclama Tien-O-Tzê, reconhecendo-a ao primeiro relance.
O sábio não errara. Seong-Ngá reina sobre as selenitas. Ela, que se refugiara na Lua enquanto o seu esposo, Hau-Ngai, se exilara no palácio do Sol, ora toma a configuração de uma rã de três pernas, ora se ostenta em toda a sua beleza de imortal.
Felizmente que, para receber as visitas, não apareceu sob a forma de batráquio, o que seria deselegante. Sentada num trono de coral, rodeada de fadas dançarinas, Seong-Ngó não profere uma única palavra, mas eles percebem pelo brilho dos seus olhos maliciosos tudo o que ela tem para lhes contar.
Com um gesto insinuante, rodopiando o leque, Seong-Ngó aponta para o cimo de uma colina próxima, onde o coelho de jade, diante do almofariz, prepara incansavelmente o remédio contra todos os males. É o elixir da imortalidade. A guardiã da Lua parece dizer:
“Querem provar? Apressem-se…”
Sábio e imperador descem, em corrida, a escadaria e precipitam-se para a colina. Esquecidos das regras de reverência, nem agradeceram a generosidade do convite.
Antes de alcançarem o coelho, na sua oficina de alquimista, têm de passar por um desfiladeiro obscuro. Cessaram os cânticos de saudação. Sábio e imperador vão sós e estremecem quando lhes chega às narinas um odor áspero de animal feroz, no seu refúgio.
Logo em seguida um rugido e, após este, outro e outro ainda, todos assustadores. Um tigre cinzento e branco assoma ao outro extremo do desfiladeiro. Revira os olhos rancorosos e vai saltar sobre os dois viajantes.
— Fujamos — grita, apavorado, o imperador Meng Uóng. — O teu bordão, onde o deixaste?
— Longe — responde-lhe o sábio, que já corre à frente do príncipe.
Tien-O-tzê, pela primeira e única vez na vida olvidou, naquele transe, as precedências da etiqueta e o comedimento a que a sua provecta idade obrigaria.
Os pés afundam-se no musgo como na neve, o que lhes prejudica o despacho da corrida. Sentem sobre as costas o hálito em fogo do tigre implacável…
— Feche os olhos, Majestade. O sonho mau vai passar.
À voz entrecortada do sábio responde o imperador, aflito:
— E aonde me agarro desta vez?
O sábio, sem parar de correr, grita num assomo de impaciência:
— Agarre-se à minha mão — enquanto lha estende. — Acabo de descobrir a raiz de um raio de luar que nos levará até à Terra.
— Aguentará o nosso peso? — teme o imperador.
O sábio repete, soluçando de cansaço, a máxima de La-Long:
— Queres… que os teus desejos… aconteçam? Fecha… os olhos. Acredite… acredite, Majestade!
Mas o imperador duvida:
— E o tigre? O tigre não virá atrás de nós?
— O tigre não conhece a máxima e não fecha os olhos — exaspera-se Tien-O-Tzê. — O tigre tem medo de cair. Nós não!
De olhos fechados, escorregam pelo raio de luar que se arqueia e alarga até parecer uma estrada de descida suave.
Assim, sem sobressalto, chegam ao jardim imperial. A Lua escondeu-se. Os archotes da varanda ardem, inúteis, à luz da madrugada.
Desde essa noite inesquecível que o imperador Meng Uóng tange o alaúde, evocando as melodias que ouviu das selenitas.
E, entusiasmado pelos bailados e cânticos das fadas lunares, criou uma escola, num pavilhão, no meio de um pomar de pereiras.
Aí, os jovens do palácio foram industriados na arte de dançar e cantar como os habitantes da Lua.
Assim é justificada a origem do teatro chinês e o nome Lei-Un-Tchi-Tâl, “discípulos do pomar das peras”, como são designados os seus actores.
Quanto ao bordão de cerejeira que o sábio Tien-O-Tzê plantara na superfície musgosa da Lua, conta a lenda que ganhou ramos, folhas, flores…
Quem quiser ver a cerejeira, que olhe para a lua na noite que precede o décimo quinto dia do oitavo mês lunar, segundo o calendário chinês.
Se não conseguir ver, feche os olhos. No espelho da imaginação tudo acontece como queremos…
António Torrado
A cerejeira da Lua
Instituto cultural de Macau, Editorial Pública, Lda, 1990
 
 
A aposta de leitura
A minha irmã mais velha tinha acabado de ler um romance. O relógio ia bater as nove da noite e eu esperava com receio que a minha mãe viesse mandar-me para a cama. Eu, que nunca tinha podido ler um livro até à última página, achava que a minha irmã acabava de realizar um voo prodigioso, pois, com as suas inúmeras páginas, não se poderia comparar o livro ao espaço? Pelas janelas abertas, sentia-se a noite agradável de Julho.
Senti-me desgostoso e jurei a mim próprio que também eu havia de ler um livro.
Na tarde do dia seguinte, disse à minha irmã:
— Aposto contigo como vou ler um livro inteiro.
— Ainda és muito pequeno.
— Já sou bem grande e corro mais depressa do que tu! — protestei com indignação.
Pegámos cada um em seu livro de grossura média, a que contámos as páginas, e combinámos que, aquele que acabasse a leitura em primeiro lugar, comeria a sobremesa do outro.
— Vamos para debaixo da tília — propus.
Estendemo-nos à sombra daquela árvore prodigiosa de tronco alto como uma torre e com uma forma que dir-se-ia ter sido escavado. A quatro pés do chão, este dividia-se em várias pernadas mestras, imponentes, parecendo, cada uma delas, por sua vez, o tronco de uma grande árvore. No seu conjunto, as quatro pernadas formavam a armação de um imenso guarda-sol de folhas. Tínhamos jurado, pelo nome de qualquer santo ou divindade, que não saltaríamos nenhuma página, nem uma linha sequer.
Atirei-me ao livro como um leão à sua presa. Devoradas duas páginas, levantei rapidamente os olhos para observar a minha irmã: de cócoras, a três passos do tronco, segurava o livro na saia, entre os joelhos afastados e não se mexia. Não pude ver-lhe os olhos, mas senti que para mim eram uns rivais temíveis e, a tremer, retomei a corrida.
O que estava eu a ler? Nunca soube, nem sequer naquele momento, porque se tratava apenas de correr e ultrapassar a minha adversária… Enquanto lia, não pude deixar de notar a rapidez com que a minha irmã virava as páginas e senti que eu já estava a ficar para trás. Quis saltar para ganhar avanço; mas lembrei-me do nosso juramento e detive-me. O tempo não era de trovoada, mas, para o culpado, o raio está sempre por perto. Cheio de ânimo, pus-me a galope. No entanto, mil obstáculos, sombrios ou brilhantes, atravessavam-se no meu caminho: de repente, certas palavras alongavam-se ou ficavam tão estreitas, que pareciam querer tornar-se invisíveis, ou então, várias palavras ou pedaços de frase colavam-se uns aos outros como bolhas à superfície de um lago e acabavam por formar uma espuma esquisita. Mais adiante, pareciam andar à bulha umas com as outras, e eu era obrigado a separá-las. Tudo aquilo me impedia de avançar.
Os meus olhos trabalharam muito. Mas pude fazer alguns voos em flecha que rasaram deliciosamente a página. O enlevo desse movimento fez-me esquecer a aposta. Atrasei-me a olhar à volta das palavras, ou até mais acima, e cheguei mesmo a parar para engendrar um sentido obscuro, como um cão que fareja uma toupeira. Ou então, fazia estoirar uma palavra como uma cápsula e daquela semente morta soltava-se o germe, desenvolvia-se, terminando, em poucos segundos, o seu crescimento. Naqueles instantes eu tinha sido árvore, floresta, para voltar a ser, logo a seguir, dois olhos a correrem para uma nova descoberta.
Assim prosseguiu por algum tempo a minha leitura, num outro mundo, sem a curiosidade de verificar o caminho percorrido.
De repente, estremeci. Tinha entrado numa espécie de túnel onde reinavam as trevas. Apesar de avançar corajosamente, não consegui encontrar nenhum sentido. O medo de ficar para sempre bloqueado apoderou-se de mim, de uma forma tão violenta, que fechei os olhos, como para mergulhar mais fundo, encontrar a luz e esquecer a escuridão.
Foi o que aconteceu. Nem sequer me apercebi de que erguera as pálpebras. À minha frente brilhou, de repente, uma claridade sobrenatural, como a que deve ver o afogado ao ressuscitar da água.
Ouvi a melodia de um melro. Cada sílaba sua parecia gravar-se na folhagem da tília, e aquela nova leitura reteve o meu olhar lá no alto, entre as grossas pernadas, onde algo estranho me chamou a atenção: os suportes de ferro que as ligavam umas às outras com segurança. Não era a primeira vez que estava a vê-los. O meu irmão explicara-me um dia que, se não fossem eles, aquelas pernadas demasiado pesadas e apoiadas num tronco demasiado curto, viriam abaixo com toda a folhagem, como os cabos de um carrossel. Mas hoje estava a olhar para aqueles suportes de uma forma completamente nova. Não foi tanto o aspecto daqueles ferros enferrujados que me chamou a atenção, mas antes, os ramos que eles suportavam. Pareciam aceitar com dificuldade aquele incómodo, e veio-me à ideia o ranger que a árvore fazia quando o vento soprava: eram as pernadas aprisionadas que se lamentavam.
Pus o livro de lado e, em bicos de pés, apoiado no tronco com ambas as mãos, pus-me a observar os ramos de mais perto. Uma folhagem espessa encobria-me o mistério. Estaria o tronco oco e sacrificado a pedir-me ajuda e a oferecer-me as suas asperezas sólidas para me servirem de espigões e eu poder trepar até à junção de onde saíam as quatro pernadas mestras?
Não tive dificuldade em subir, pois pude fazer a cabeça passar por entre a folhagem. Em seguida, agarrei-me à casca e lá consegui segurar-me, de uma assentada, no ângulo formado pelas duas pernadas mais grossas.
Um mundo novo e doloroso abriu-se diante de mim. No entanto, aquela sensação de angústia que eu sentira a princípio, ao ver a parte de baixo dos ramos onde os ferros enferrujados tinham cedido ao peso, desaparecera logo que pude ver de perto os músculos vigorosos da tília. Pareciam vingar-se dos ferros, porque em vários pontos, aliás, em quase toda a extensão, a carne da madeira tinha-se fechado à volta do ferro, formando inchaços nodosos, de forma que os ferros, segurando ainda os ramos, tinham, por sua vez, ficado prisioneiros nela.
A minha alegria era tanta, que bati palmas e quase perdi o equilíbrio. Depois levantei os olhos. Sem dúvida, a grande tília era a mais forte. Que necessidade tinha ela de apoio? As pernadas mestras subiam e mantinham-se sem dificuldade, deixando pender ramos mais pequenos que pareciam estar ali só para se divertirem. No topo, tudo confluía num verdejante infinito. Uma alegre vertigem apoderou-se de mim; o dossel de folhas pôs-se a girar por cima da minha cabeça, os cinco ramos giravam também sobre o eixo do tronco principal. Ouvi o canto dos pássaros como nunca tinha ouvido, e, de repente, lembrando-me da comparação do meu irmão, pareceu-me que estava na feira popular e que a árvore se tinha transformado num carrossel vivo.
Um movimento desajeitado meu obrigou-me a baixar os olhos, enquanto me agarrava a um ramo. Vi a minha irmã. Vista de cima, não passava de uma grande bola cinzenta com outra mais pequena, a cabeça, no meio. O duplo quadrado branco do livro recordou-me bruscamente a leitura. Um misto de furor e surpresa fez-me hesitar um minuto ali até onde tinha subido quase sem me dar conta. Há quanto tempo estava ali?
Baixei-me e deixei-me escorregar sem barulho. No chão, escondi-me atrás do tronco da tília para a minha irmã não me ver, caso levantasse a cabeça. Cuidado inútil. A minha irmã lia, toda metida no livro. Só a mão que virava as páginas, parecia viver no mesmo mundo que eu. Com efeito, ela não levantara os olhos desde que entrara na história. Eu podia ter caído da árvore, ter arrastado comigo a tília, com um assustador ruído de ferros, que a minha irmã não se desligaria do livro.
Despachei-me a pegar no meu e retomei a posição que ocupava no momento em que a árvore me tinha chamado. Estava perdido, bem sabia. Havia duas coisas que mo mostravam: o sol, que já ia baixo, e a reduzida espessura do quadrado branco que a minha irmã segurava na mão direita. Era demasiado tarde para recuperar o tempo perdido. No entanto, fingi estar absorvido na leitura do meu livro, observando pelo canto do olho, com angústia, os progressos da minha irmã, marcados pelo movimento nervoso da mão que virava as páginas. Vi as suas pálpebras baterem cada vez mais rápido, à medida que o fim se aproximava e, de repente, o desenlace que eu receava concretizou-se. A minha irmã deixou cair o livro na relva; ergueu a cabeça e ficou uns momentos de olhos fechados. Depois, voltando-se para mim, pareceu procurar-me, embora eu estivesse diante dela e ela já tivesse os olhos abertos. Fechei o meu livro com barulho.
— Acabei — disse a minha irmã ainda inchada de leitura.
— Eu também — exclamei com uma força que me fez tremer.
Ela olhou para mim, admirada, compôs uma mecha de cabelo que a incomodava:
— Não é verdade — disse, sem se zangar.
Julguei que se tinha apercebido da minha ausência mas agarrei-me à mentira, como há pouco me agarrara ao ramo.
— Acabei antes de ti — afirmei eu.
— Então conta lá a história.
Corado de vergonha, comecei a contar-lhe o início do livro até ao momento em que tinha entrado no túnel. Depois, levantando-me com uma tal audácia que não sabia que tinha, continuei, em imaginação, o caminho por onde tinha andado. Tremia e avançava cheio de raiva; a grande tília oferecia-me o apoio dos seus braços musculosos, e, no entanto, parecia que ia sacudir os ferros e atirar-se sobre mim para me castigar.
A minha irmã deixou-me continuar por algum tempo, depois bateu palmas e exclamou:
— Estás a mentir, estás a inventar. Só leste o início do livro. Eu já o conheço, li-o todo e vou contar-te a história.
Comecei a soluçar de raiva e de remorsos, apanhei o livro que me tinha caído das mãos e atirei-o para longe, com todas as minhas forças.
O meu desespero redobrou quando a minha irmã, julgando consolar-me, me disse que renunciava à minha sobremesa.
Franz Hellens
Contes et nouvelles ou Les souvenir de Frédéric
Bruxelles, Editions Jacques Antoine, 1977
Tradução e adaptação


A aluna estrangeira

Chama-se Salima, a nova da turma.
Não é uma menina calada e tímida, como Gabi. Salima faz-se notada em todo o lado.
Fala mais alto do que os outros. Veste roupas mais garridas do que a maioria. E não deixa que lhe preguem partidas.
Por isso, as crianças tentam constantemente arreliá-la. Diverte-as enfurecerem Salima, ouvi-la gritar, vê-la debater-se à volta delas.
Troçam dos seus cabelos encarapinhados, das narinas grandes e da pele escura.
Salima é negra.
Fala bem alemão porque veio para a Europa com os pais quando ainda era bebé.
Gabi acha graça a tudo na nova menina.
Gosta dos olhos grandes, da voz gutural, da pele cor de chocolate.
Quando Salima ri, ri-se com o corpo todo.
Quando está furiosa, parece um vulcão, onde tudo ferve.
Gabi emprestou logo o seu caderno à nova aluna, para ela copiar as lições.
Com ela, Salima nunca é atrevida ou rude. Quando a deixam em paz, ela é igual aos outros.
Mal a menina estrangeira chegou à turma, há um mês, a escaramuça começou imediatamente:
— Uma preta! — disse Bettina bastante alto. Está sentada ao lado de Gabi e é a sua melhor amiga.
— É negra! — disse Georg arregalando os olhos.
A cozinheira negra já cá está… já, já, já…(1) — trauteou Inga baixinho, da penúltima carteira.
Infelizmente, a pior é Bettina. Tem sempre alguma coisa a apontar à nova menina. A culpada disso é a mãe. Até a proibiu de voltar da escola para casa com “a tal preta”. A mãe nem conhece a menina estrangeira mas, mesmo assim, não gosta dela.
— Não é de cá — diz. — Vê-se à distância de dez metros que é diferente de nós.
Bettina também acha.
Gabi não percebe. “Isso não é motivo para não se gostar de alguém”, pensa. “Até é feio excluir-se uma pessoa, só porque ela tem um aspecto diferente do nosso.”

Gabi sabe o que é não pertencer ao grupo, porque também já foi nova na turma e ainda não há muito tempo. A nova, com grandes dentes da frente e um nariz demasiado comprido. “Peixe Espada”, foi como lhe chamaram na altura. Precisou de um ano inteirinho até conseguir aguentar, sem chorar, a troça dos outros.
Mesmo assim, foi-lhe mais fácil do que o é agora para Salima. Porque Gabi é branca. Gradualmente, foi conseguindo ultrapassar o medo em relação aos outros.
Mas Salima nunca conseguiria esconder a sua pele escura.
Gabi gostava de dizer aos outros da classe que a nova só é atrevida porque tem de estar sempre a defender-se. Porque não a deixam em paz de uma vez por todas?
Só que Gabi tem medo de se pôr claramente do lado da menina estrangeira. Bem lhe quer mostrar que gosta dela, mas os outros não podem notar.
Não gostaria de vir a ter a maioria dos colegas contra ela, como antes, quando chegou como nova à turma.
Mesmo assim…
“Tenho de arranjar maneira de mostrar à Salima que estou do lado dela”, pensa Gabi. “E que gosto dela.”
Às vezes, no fim das aulas, depois dos outros já terem saído, Gabi atrasa-se de propósito para ficar mais um pouco com Salima, que demora sempre muito tempo a arrumar as coisas e a metê-las na pasta.
De repente, cai-lhe o estojo das mãos, e todos os lápis, os lápis de cor, duas borrachas e um pedaço de chocolate já mordido rolam para debaixo da carteira.
— Vá, eu ajudo-te — oferece-se Gabi.
Deitadas de barriga para baixo, tentam “pescar” o material escolar e o chocolate. Assim, ao tentarem chegar as duas ao mesmo lápis, chocam com os narizes uma na outra debaixo da carteira.
— Ai! Ui! — exclamam em coro, esfregando os narizes amachucados. E desatam a rir.
Salima diz de repente:
— Tu és simpática, sabes, mas os outros… —E faz um gesto de desprezo com a mão, que mais parece uma tentativa de nadar, porque Salima ainda está deitada. Gabi levanta-se e sacode o pó das calças.
Salima gatinha para fora da carteira mas fica sentada no chão.
— Sabes — diz, apontando para a sala vazia — se não lhes fizer frente desde o início, acabam comigo. Aprendi isto quando ainda era pequena e nos mudámos para cá. Algumas pessoas comportam-se de forma muito estúpida só porque tenho a pele escura. Acham que tenho de me sujeitar a tudo! — Salima levanta-se e mantém-se direita.
— Mas de mim não conseguem nada. De mim, não!
Por momentos, parece que vai chorar, mas não.
Gabi admira a menina estrangeira por ter a coragem de não se submeter. Ela própria tinha-se sempre escondido na sua casinha de caracol.
Encolhida, amedrontada, magoada nos seus sentimentos.
Salima, no entanto, é um pouco como um ouriço-cacheiro. Mal há sinal de perigo, fica logo eriçada. Ela até é bem-disposta e gosta de rir. “Só temos de afastar os picos um pouco para o lado e não a provocar,” pensa Gabi. “E também ser amáveis com ela. Porque é que a maioria não percebe isso?”
A maior parte dos meninos não se deu sequer ao trabalho de tentar compreender a nova colega. Pensam que podem ofendê-la. Ela grita, mas ri logo a seguir.
Podem pisá-la. Ela riposta, mas, quando vai para casa, já vai a cantar.
Aguenta muita coisa. Podem fazer-lhe sentir que é diferente. É mesmo bom que haja cá uma aluna como ela. Ao menos, há mais animação.
É sempre Bettina quem desafia a menina negra e quem provoca os outros. Como neste momento.
Bettina faz pontaria com a borracha às costas de Salima. A borracha faz ricochete e salta de novo para a mesa. A brincadeira repete-se quatro, cinco vezes.
Alguns riem.
— Palerma! — grita Salima, que já começa a ficar farta.
— Acalma-te — diz Paul, com uma voz zangada e dura, ele que nem tem nada a ver com o assunto.
— Deixa-a em paz! — mete-se Alexa, que está sentada ao lado de Salima.
Alexa tomou o partido de Salima. Pode dar-se ao luxo de dizer abertamente o que pensa.
“Como ela é querida por todos, pode admitir que gosta da nova”, pensa Gabi.
Com Gabi é mais do que “gostar”. Ela sente com Salima. Sabe, pelo que passou, o que Salima tem de aguentar. Tem pena dela. Lá por Salima, para quem vê de fora, reagir melhor do que ela reagiu, não quer dizer que não se sinta igualmente ferida.
“Tenho mesmo de fazer alguma coisa”, pensa Gabi. “Tenho de lhe provar que sou sua amiga.”
“A dois”, pensa Gabi, “dói tudo um pouquinho menos. A dois, pode-se partilhar a dor. Mas o que posso fazer sem pôr logo os outros contra mim?”
Gabi decide deitar-se na varanda todas as tardes depois da escola e “torrar” ao sol. Uma hora inteirinha até ficar cor de chocolate. Assim, Salima deixaria de ser a única com a pele escura. No Verão, a mãe está sempre a dizer a Gabi:
— Pareces uma negra!
Assim, a partir de hoje, Gabi tornar-se-ia negra.
— Que estupidez — diz em voz alta, afastando aquela ideia. — Uma pessoa não se torna negra só por se deitar umas horas ao sol. Não se fica, só por isso, com nariz largo, nem com lábios grossos, nem com carapinha. É preciso muito mais. E, principalmente, ter uma mãe ou um pai que sejam negros.
Gabi continua a magicar. Tem os cotovelos fincados na mesa e a cara apoiada nas mãos. Nem repara no que está a passar-se à sua volta. Tem o olhar fixo no padrão verde das costas do casaco de Salima.
De repente, um bico de lápis desliza para a frente, na diagonal. Pertence ao lápis que Bettina segura na mão.
— O que estás outra vez a fazer? — Gabi desvia Bettina com um toque.
— Deixa-me!
Bettina segura no lápis afiado de forma a apontar a mina à nuca de Salima. Estica o braço até quase lhe tocar.
— Será que ela sente? — segreda Bettina.
— Pára com isso!
Mas Bettina há muito que quer saber como é uma carapinha. Se é rija ou se é mole.
Bettina estica o braço um pouco mais para a frente. Alguns observam a brincadeira. De repente, Salima começa a balançar-se na cadeira. Dá lanço na beira da mesa, inclina-se com força para trás e acerta com a nuca no bico do lápis.
Um grito. Breve e cortante.
Com a mão direita na nuca, Salima dá umas voltas sobre si mesma. Com a esquerda, dá uma bofetada a Bettina.
— Estás maluca!! — grita Bettina — Não te fiz nada!
— Picaste-me!
— Não picou nada! — confirma Brigitte, que nem tinha prestado atenção ao que se passara.
Que pena a professora ainda não estar na sala. Podia ter acalmado a discussão.
— Vais pagar-me pela bofetada! — diz Bettina zangada.
Gabi estende o braço. Quer afagar a menina negra.
Mas Salima levantou-se de um salto e corre para a porta, a mão ainda na cabeça. Sobre a mão escorre um pouco de sangue. Antes de sair, Salima pára repentinamente. Devagar, muito devagarinho, vira-se para a turma, que a olha com curiosidade.
A menina estrangeira chora. Em silêncio. Só o subir e descer do corpo e o fungar baixinho revelam a intensidade do choro. Os grandes olhos parecem ainda maiores sob as lágrimas.
Fica por uns momentos parada, sem se mexer. Depois, fecha a porta com estrondo.
Silêncio aflitivo.
Salima chora. Já não ri. Não canta. Chora, como qualquer outra criança também teria chorado.
Gabi está como que pregada à carteira. Muda com o susto. As pernas estão pesadas como se tivesse chumbo nos pés. Porque não se levanta? Porque não corre atrás de Salima? Ela própria não percebe. Era precisamente agora que Salima mais precisava dela.
“Vocês são maus!”, quer gritar. Mas não lhe sai nada.
— Vocês são maus! — grita Michael em vez dela. Está sentado na primeira fila. — Ela não vos fez nada. Se fosse comigo, tinhas apanhado logo duas bofetadas, Bettina.
Agora que Salima não está cá e não pode ouvir, é que ele diz isto”, pensa Gabi.
E ela própria, que tanto queria ter corrido atrás dela, que queria tê-la agarrado, protegido… não conseguiu!!
De repente começam todos a falar ao mesmo tempo.
— Ela não tem culpa de ser preta — diz Alexa novamente, que foi a primeira a defender a menina estrangeira. — Imaginem-se o único branco numa turma de pretos. Gostavam que vos acontecesse o mesmo?
— Salima pode não ter culpa de ser preta — diz Inga — mas no meu pão com fiambre é que nunca a deixaria trincar.
— Ugh! — diz Helga, arrepiando-se.
— Ugh! — diz Paul, arrepiando-se também.
— A ti é que ninguém te deixava trincá-lo, com tantas borbulhas — grita Martin.
— Saliva é saliva — diz Paul.
— Exactamente! E com Salima não é a mesma coisa? — Alex bate com o punho na mesa.
Gabi assusta-se. As vozes ressoam-lhe na cabeça. A pancada com o punho arrancou-a da confusão das palavras.
Há pouco, quando Salima estava a chorar à porta, Gabi tinha tido uma oportunidade. Podia ter mostrado que achava horrível a forma como os outros se comportavam. Especialmente Bettina. Em vez disso, tentou apenas acariciar a nova menina. Medrosamente, do seu lugar, de onde não precisava de se levantar nem de sentir a turma atrás das costas. Mas novamente a mesma sensação… Não.
O medo de tornar a ser ridicularizada é maior do que a ligação a Salima.
Mesmo assim, Gabi diz, muito baixinho:
— A Salima é querida. Porque é que és tão antipática com ela?
Bettina ouviu.
— Muito querida — diz, venenosa. — Mas cheira mal!
— Que estupidez! — grita Michael, que só ouviu as últimas palavras. — Já alguma vez estiveste sentada ao lado do Markus? Ele cheira tão mal que até as minhas meias fogem dele!
Markus, hoje, não veio às aulas. Por isso, a ofensa não o magoa. Se estivesse presente, ninguém teria dito aquilo.
Mas à menina estrangeira diz-se-lhe tudo na cara.
Bettina cala-se. A cara ainda está um pouco vermelha da bofetada. De repente, começa outra vez a barafustar:
— Anda vestida como um papagaio. Só lhe faltam as penas no rabo.
Risos abafados.
— Cala a boca de uma vez por todas! — diz Gabi, agora em voz alta.
A frase desapareceu na risota geral. Cada um grita à turma a sua opinião.
— Acabou! Acabou! Já chega! — Gabi grita agora mais alto do que os outros. Grita e tapa os ouvidos ao mesmo tempo. Ninguém repara que a porta da sala se abre.
Quando Salima se dirige em silêncio para o seu lugar, todos se calam de repente. Não olha para ninguém, tem os olhos pregados no chão e um grande penso na nuca.
Gabi levanta-se antes de Salima se sentar. É automático, o chumbo dos pés desapareceu. Gabi nem precisa de pensar. Vai direita a Salima e, em frente de toda a turma, põe-lhe carinhosamente o braço à volta dos ombros. Não custou nada.
— Lamentamos todos — diz Gabi em voz alta, de forma a que todos ouçam, especialmente Bettina.
Salima não diz nada.
Agora levantam-se também Alexa e Michael. Inga e Martina. Até Paul se chega à frente. O pequeno grupo cresce à volta de Bettina.
— Não fiz de propósito! — diz esta baixinho.
— Dói muito? — pergunta Gabi.
Salima levanta finalmente os olhos e olha para Gabi. Põe o braço à sua volta.
— Agora já não — diz.



Evelyne Stein-Fischer
13 Geschichten vom Liebhaben
München, DTV Junior, 1990
Tradução e adapt