terça-feira, 13 de janeiro de 2015

 
 
A aposta de leitura
A minha irmã mais velha tinha acabado de ler um romance. O relógio ia bater as nove da noite e eu esperava com receio que a minha mãe viesse mandar-me para a cama. Eu, que nunca tinha podido ler um livro até à última página, achava que a minha irmã acabava de realizar um voo prodigioso, pois, com as suas inúmeras páginas, não se poderia comparar o livro ao espaço? Pelas janelas abertas, sentia-se a noite agradável de Julho.
Senti-me desgostoso e jurei a mim próprio que também eu havia de ler um livro.
Na tarde do dia seguinte, disse à minha irmã:
— Aposto contigo como vou ler um livro inteiro.
— Ainda és muito pequeno.
— Já sou bem grande e corro mais depressa do que tu! — protestei com indignação.
Pegámos cada um em seu livro de grossura média, a que contámos as páginas, e combinámos que, aquele que acabasse a leitura em primeiro lugar, comeria a sobremesa do outro.
— Vamos para debaixo da tília — propus.
Estendemo-nos à sombra daquela árvore prodigiosa de tronco alto como uma torre e com uma forma que dir-se-ia ter sido escavado. A quatro pés do chão, este dividia-se em várias pernadas mestras, imponentes, parecendo, cada uma delas, por sua vez, o tronco de uma grande árvore. No seu conjunto, as quatro pernadas formavam a armação de um imenso guarda-sol de folhas. Tínhamos jurado, pelo nome de qualquer santo ou divindade, que não saltaríamos nenhuma página, nem uma linha sequer.
Atirei-me ao livro como um leão à sua presa. Devoradas duas páginas, levantei rapidamente os olhos para observar a minha irmã: de cócoras, a três passos do tronco, segurava o livro na saia, entre os joelhos afastados e não se mexia. Não pude ver-lhe os olhos, mas senti que para mim eram uns rivais temíveis e, a tremer, retomei a corrida.
O que estava eu a ler? Nunca soube, nem sequer naquele momento, porque se tratava apenas de correr e ultrapassar a minha adversária… Enquanto lia, não pude deixar de notar a rapidez com que a minha irmã virava as páginas e senti que eu já estava a ficar para trás. Quis saltar para ganhar avanço; mas lembrei-me do nosso juramento e detive-me. O tempo não era de trovoada, mas, para o culpado, o raio está sempre por perto. Cheio de ânimo, pus-me a galope. No entanto, mil obstáculos, sombrios ou brilhantes, atravessavam-se no meu caminho: de repente, certas palavras alongavam-se ou ficavam tão estreitas, que pareciam querer tornar-se invisíveis, ou então, várias palavras ou pedaços de frase colavam-se uns aos outros como bolhas à superfície de um lago e acabavam por formar uma espuma esquisita. Mais adiante, pareciam andar à bulha umas com as outras, e eu era obrigado a separá-las. Tudo aquilo me impedia de avançar.
Os meus olhos trabalharam muito. Mas pude fazer alguns voos em flecha que rasaram deliciosamente a página. O enlevo desse movimento fez-me esquecer a aposta. Atrasei-me a olhar à volta das palavras, ou até mais acima, e cheguei mesmo a parar para engendrar um sentido obscuro, como um cão que fareja uma toupeira. Ou então, fazia estoirar uma palavra como uma cápsula e daquela semente morta soltava-se o germe, desenvolvia-se, terminando, em poucos segundos, o seu crescimento. Naqueles instantes eu tinha sido árvore, floresta, para voltar a ser, logo a seguir, dois olhos a correrem para uma nova descoberta.
Assim prosseguiu por algum tempo a minha leitura, num outro mundo, sem a curiosidade de verificar o caminho percorrido.
De repente, estremeci. Tinha entrado numa espécie de túnel onde reinavam as trevas. Apesar de avançar corajosamente, não consegui encontrar nenhum sentido. O medo de ficar para sempre bloqueado apoderou-se de mim, de uma forma tão violenta, que fechei os olhos, como para mergulhar mais fundo, encontrar a luz e esquecer a escuridão.
Foi o que aconteceu. Nem sequer me apercebi de que erguera as pálpebras. À minha frente brilhou, de repente, uma claridade sobrenatural, como a que deve ver o afogado ao ressuscitar da água.
Ouvi a melodia de um melro. Cada sílaba sua parecia gravar-se na folhagem da tília, e aquela nova leitura reteve o meu olhar lá no alto, entre as grossas pernadas, onde algo estranho me chamou a atenção: os suportes de ferro que as ligavam umas às outras com segurança. Não era a primeira vez que estava a vê-los. O meu irmão explicara-me um dia que, se não fossem eles, aquelas pernadas demasiado pesadas e apoiadas num tronco demasiado curto, viriam abaixo com toda a folhagem, como os cabos de um carrossel. Mas hoje estava a olhar para aqueles suportes de uma forma completamente nova. Não foi tanto o aspecto daqueles ferros enferrujados que me chamou a atenção, mas antes, os ramos que eles suportavam. Pareciam aceitar com dificuldade aquele incómodo, e veio-me à ideia o ranger que a árvore fazia quando o vento soprava: eram as pernadas aprisionadas que se lamentavam.
Pus o livro de lado e, em bicos de pés, apoiado no tronco com ambas as mãos, pus-me a observar os ramos de mais perto. Uma folhagem espessa encobria-me o mistério. Estaria o tronco oco e sacrificado a pedir-me ajuda e a oferecer-me as suas asperezas sólidas para me servirem de espigões e eu poder trepar até à junção de onde saíam as quatro pernadas mestras?
Não tive dificuldade em subir, pois pude fazer a cabeça passar por entre a folhagem. Em seguida, agarrei-me à casca e lá consegui segurar-me, de uma assentada, no ângulo formado pelas duas pernadas mais grossas.
Um mundo novo e doloroso abriu-se diante de mim. No entanto, aquela sensação de angústia que eu sentira a princípio, ao ver a parte de baixo dos ramos onde os ferros enferrujados tinham cedido ao peso, desaparecera logo que pude ver de perto os músculos vigorosos da tília. Pareciam vingar-se dos ferros, porque em vários pontos, aliás, em quase toda a extensão, a carne da madeira tinha-se fechado à volta do ferro, formando inchaços nodosos, de forma que os ferros, segurando ainda os ramos, tinham, por sua vez, ficado prisioneiros nela.
A minha alegria era tanta, que bati palmas e quase perdi o equilíbrio. Depois levantei os olhos. Sem dúvida, a grande tília era a mais forte. Que necessidade tinha ela de apoio? As pernadas mestras subiam e mantinham-se sem dificuldade, deixando pender ramos mais pequenos que pareciam estar ali só para se divertirem. No topo, tudo confluía num verdejante infinito. Uma alegre vertigem apoderou-se de mim; o dossel de folhas pôs-se a girar por cima da minha cabeça, os cinco ramos giravam também sobre o eixo do tronco principal. Ouvi o canto dos pássaros como nunca tinha ouvido, e, de repente, lembrando-me da comparação do meu irmão, pareceu-me que estava na feira popular e que a árvore se tinha transformado num carrossel vivo.
Um movimento desajeitado meu obrigou-me a baixar os olhos, enquanto me agarrava a um ramo. Vi a minha irmã. Vista de cima, não passava de uma grande bola cinzenta com outra mais pequena, a cabeça, no meio. O duplo quadrado branco do livro recordou-me bruscamente a leitura. Um misto de furor e surpresa fez-me hesitar um minuto ali até onde tinha subido quase sem me dar conta. Há quanto tempo estava ali?
Baixei-me e deixei-me escorregar sem barulho. No chão, escondi-me atrás do tronco da tília para a minha irmã não me ver, caso levantasse a cabeça. Cuidado inútil. A minha irmã lia, toda metida no livro. Só a mão que virava as páginas, parecia viver no mesmo mundo que eu. Com efeito, ela não levantara os olhos desde que entrara na história. Eu podia ter caído da árvore, ter arrastado comigo a tília, com um assustador ruído de ferros, que a minha irmã não se desligaria do livro.
Despachei-me a pegar no meu e retomei a posição que ocupava no momento em que a árvore me tinha chamado. Estava perdido, bem sabia. Havia duas coisas que mo mostravam: o sol, que já ia baixo, e a reduzida espessura do quadrado branco que a minha irmã segurava na mão direita. Era demasiado tarde para recuperar o tempo perdido. No entanto, fingi estar absorvido na leitura do meu livro, observando pelo canto do olho, com angústia, os progressos da minha irmã, marcados pelo movimento nervoso da mão que virava as páginas. Vi as suas pálpebras baterem cada vez mais rápido, à medida que o fim se aproximava e, de repente, o desenlace que eu receava concretizou-se. A minha irmã deixou cair o livro na relva; ergueu a cabeça e ficou uns momentos de olhos fechados. Depois, voltando-se para mim, pareceu procurar-me, embora eu estivesse diante dela e ela já tivesse os olhos abertos. Fechei o meu livro com barulho.
— Acabei — disse a minha irmã ainda inchada de leitura.
— Eu também — exclamei com uma força que me fez tremer.
Ela olhou para mim, admirada, compôs uma mecha de cabelo que a incomodava:
— Não é verdade — disse, sem se zangar.
Julguei que se tinha apercebido da minha ausência mas agarrei-me à mentira, como há pouco me agarrara ao ramo.
— Acabei antes de ti — afirmei eu.
— Então conta lá a história.
Corado de vergonha, comecei a contar-lhe o início do livro até ao momento em que tinha entrado no túnel. Depois, levantando-me com uma tal audácia que não sabia que tinha, continuei, em imaginação, o caminho por onde tinha andado. Tremia e avançava cheio de raiva; a grande tília oferecia-me o apoio dos seus braços musculosos, e, no entanto, parecia que ia sacudir os ferros e atirar-se sobre mim para me castigar.
A minha irmã deixou-me continuar por algum tempo, depois bateu palmas e exclamou:
— Estás a mentir, estás a inventar. Só leste o início do livro. Eu já o conheço, li-o todo e vou contar-te a história.
Comecei a soluçar de raiva e de remorsos, apanhei o livro que me tinha caído das mãos e atirei-o para longe, com todas as minhas forças.
O meu desespero redobrou quando a minha irmã, julgando consolar-me, me disse que renunciava à minha sobremesa.
Franz Hellens
Contes et nouvelles ou Les souvenir de Frédéric
Bruxelles, Editions Jacques Antoine, 1977
Tradução e adaptação