terça-feira, 12 de maio de 2015

A árvore da chuva


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Era uma vez uma aldeia, situada num terreno árido no meio do deserto. O sol tinha secado os seus campos e a areia invadira por completo os caminhos, as casas e as bocas dos aldeões.
Apesar do calor sufocante, os homens tentavam lavrar os campos, retirando água de um poço… cada vez mais vazio. Mas parecia que a terra não tinha mais para dar e se mantinha surda às súplicas dos habitantes da região…
Num pátio próximo das cubatas feitas de argamassa, as mulheres teciam tapetes com folhas de tamareira para vender no mercado da cidade vizinha. Partiam cedo de manhã, a pé, e um burro carregava a mercadoria. Chegavam lá apenas ao meio-dia, exaustas da longa caminhada sob o sol. Quando regressavam à aldeia era já noite, e tanto homens como crianças há muito que dormiam.
Os pés estavam gretados de percorrer tantos quilómetros, mas os sacos de arroz e os bidões de água que tinham trazido consigo, comprados com o dinheiro do seu trabalho, eram um bálsamo para as suas feridas.
Quanto às crianças, frequentavam a escola todas as manhãs, embora tivessem dificuldade de aprender com o estômago vazio.
Todos os dias os aldeões perscrutavam o céu, na esperança de que uma nuvem a anunciar chuva aparecesse. E todos os dias o poço secava cada vez mais e as colheitas de arroz diminuíam, o que aumentava o medo do que traria o dia seguinte.
Certa manhã, na pequena praça de terra vermelha, situada entre a árvore dos debates e a cubata do chefe, um grão que ninguém tinha plantado começou a germinar. Era um rebentozinho verde e tenro, redondinho como um bebé bem alimentado. Foi Kodjo o primeiro a vê-lo. O rapaz ia a caminho da escola quando avistou a pontinha verde a emergir da terra. Orgulhosa e altaneira, parecia buscar a luz do sol. Kodjo parou, observou-a e alertou a aldeia inteira.
Em breve, todos os homens, mulheres e crianças se agruparam em torno da planta.
— É uma bananeira — disse um homem.
— É um coqueiro — disse outro.
— É uma tamareira — disse um terceiro.
— Seja lá o que for — disse o chefe. — Esta planta vai dar-nos comida e água, se tomarmos conta dela. O Kodjo fica responsável pelo seu cuidado. Os outros vão buscar a água que nos resta.
Quando trouxeram a água, o jovem, orgulhoso, deitou as primeiras gotas na terra seca. No dia seguinte, o rebento tomara a forma de uma pequena planta que ondulava com o vento, indiferente ao sopro quente do sol. Kodjo sussurrou-lhe algumas palavras de encorajamento enquanto voltava a regar o pé do seu pequenino tronco com o líquido precioso.
Alguns dias mais tarde, a planta assemelhava-se já a uma árvore do tamanho de uma pequena girafa. Parecia um verdadeiro milagre no meio do deserto, com as ramagens verdes e tenras a procurarem o céu.
Os aldeões dançaram e cantaram para agradecer aos antepassados. Também abraçaram o troco da árvore e depuseram oferendas a seus pés, tais como óleo de palma e pedras raras.
Ao fim de algumas semanas, a árvore estava mais alta do que as cubatas e era tão larga como um elefante. Os aldeões gostavam de repousar à sua sombra, nas horas em que o sol ia mais alto. As crianças aprendiam mais facilmente junto dela e as mulheres teciam panos a cantar, como se a chuva não fosse demorar.
Mas um dia, ao cair da tarde, algo de muito estranho aconteceu. Tão estranho que ainda hoje os livros o relatam.
O sol acabava de desaparecer por detrás das dunas de areia e a árvore balouçava docemente com o sopro morno do vento. De repente, começou a escorrer o que parecia ser água. Dos ramos e das folhas começaram a chover gotas grossas que, estranhamente, se assemelhavam a água.
Bastante desconfiados, os aldeões aproximaram-se dela e recolheram algumas gotas com as mãos em concha. O chefe da aldeia levou-as à boca, franziu as sobrancelhas grossas e escuras, remexeu a língua, passou-a pelos lábios e declarou:
— É água!
Toda a aldeia se reuniu em torno da árvore, batizada então com o nome de “árvore da chuva”. A água corria pelos rostos das pessoas e fazia brotar sorrisos dos lábios. Entrava nas bocas desejosas de a receber e humedecia as línguas secas. Ao deslizar pelos braços e pelas pernas, limpava a poeira dos caminhos há muito acumulada.
A fim de honrar a árvore da chuva, os aldeões fizeram uma grande festa. Houve arroz com fartura, água açucarada e bolos de mandioca. Kodjo não se lembrava de ter comido ou bebido tanto! Nessa noite, todos se deitaram de estômago cheio. A árvore deixou de escorrer água ao nascer do sol, mas ninguém se preocupou: mal a noite começasse a cair, de certeza que haveria de novo água…
E assim foi. Os homens regressaram com afinco aos campos e as mulheres puseram-se de novo a sachar e a semear. As crianças iam para a escola a cantar e quase já sabiam ler.
A aldeia tinha reencontrado a serenidade.
Até ao dia em que um homem da aldeia vizinha os visitou.
Acabava de anoitecer e a árvore distribuía a sua água tão generosamente como sempre. O homem, que estava cheio de sede, parou, observou e não acreditou no que via. No dia seguinte, trouxe dois recipientes e começou a enchê-los. Quando o viu, o chefe da aldeia ordenou-lhe que fosse embora.
— A nossa aldeia morre de sede e de fome — queixou-se o estranho. — Os nossos filhos têm a barriga vazia e as nossas mulheres só têm pele e osso. Como as mães não têm leite, os bebés choram de manhã à noite. Estamos a ficar sem ânimo.
— Isso não me preocupa — disse o chefe, que era rancoroso. — A vossa aldeia tem a memória curta. Ainda há poucos meses, os vossos aldeões pilhavam sem escrúpulos os restos das nossas colheitas e pouco se importavam que passássemos fome. Vai-te embora e não voltes a aproximar-te da árvore da chuva.
O homem rumou em direção a casa, com os recipientes vazios.
No dia seguinte, Kodjo foi regar a árvore, que nenhuma necessidade tinha de água. Quando se aproximou da praça de terra vermelha, nem queria acreditar no que via: no lugar onde estivera a árvore, via-se agora um buraco. A árvore da chuva tinha desaparecido!
Kodjo correu a alertar os habitantes da aldeia, que se agruparam em torno do buraco. As mulheres desataram a soluçar e os homens lançaram gritos estridentes. No meio do desespero geral, o chefe exclamou:
— Roubaram a nossa árvore! A nossa vingança será terrível! Sigam-me!
A aldeia em peso pôs-se a caminho da aldeia vizinha. Embora seja má conselheira, a cólera dá força e coragem e, assim, os aldeões caminharam tão rapidamente que em breve avistaram as cubatas da aldeia vizinha.
— Olhem! — ordenou o chefe, designando com a mão as casas dos inimigos. — Ainda dormem, mas não por muito mais tempo.
Os rostos espelhavam ódio e vingança e estavam dispostos a usar as facas afiadas que tinham trazido consigo. À medida que se aproximavam da aldeia, avistaram ao longe a árvore da chuva. Majestosa e altiva, erguia os ramos na direção do céu. Estava viçosa como na véspera.
— Como chegou ela aqui? — exclamou Kodjo. — Uma árvore não caminha…
— Esperem por mim! — disse o chefe de forma autoritária.
Os aldeões viram-no caminhar em direção à aldeia vizinha. Quando regressou, vinha acompanhado pelo outro chefe, que lhe explicava que só os deuses conseguiam fazer as árvores andar. Se tivessem sido os aldeões vizinhos a roubá-la, nunca a teriam plantado a meio do caminho, mas sim na sua própria aldeia. As suas palavras sensatas aplacaram a cólera dos homens sedentos de vingança.
Quando a noite caiu, os habitantes das duas aldeias muniram-se de baldes, panelas e bacias e encaminharam-se para a árvore da chuva. Os olhares sombrios faziam adivinhar o ódio e via-se o cintilar das facas afiadas.
Mas da árvore não escorreu água. As folhas, os ramos e o tronco continuaram tão secos como a terra.
Desesperados, os habitantes das duas aldeias regressaram a casa sem trocar palavra.
Passaram-se semanas e passaram-se meses, e a árvore continuou seca. Contudo, todos os dias, ao cair da tarde, os habitantes das duas aldeias encontravam-se sempre junto dela, à espera de um milagre.
Certo dia, uma mulher deu à luz perto dela e as mulheres da aldeia vizinha trouxeram panos e água. Depois, cantaram canções de embalar e acolheram a criança como se fosse sua.
Pouco a pouco, começaram a conhecer-se melhor uns aos outros, partilharam refeições e as crianças tornaram-se amigas. As mulheres teciam tapetes em conjunto e iam vendê-los ao mercado. Partilhavam também água e arroz. Em breve as duas aldeias pareciam apenas uma. Todos os dias, ao cair da tarde, os aldeões cantavam e rezavam juntos.
Sentados debaixo da árvore, chegavam mesmo a esquecer que estavam à espera de chuva…
E foi então que, uma noite, quando já ninguém o esperava, a árvore voltou a escorrer água, como se houvesse nuvens no céu…
Agnès de Lestrade
L’arbre à pluie
Paris, Milan Jeunesse, 2009
(Tradução e adaptação)https://contadoresdestorias.wordpress.com/2015/02/13/a-arvore-da-chuva/
 

A velhinha que dava nomes às coisas


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Era uma vez uma velhinha que adorava dar nomes às coisas.
Chamava Betsy ao velho carro que conduzia.
Chamava Fred à velha cadeira onde se sentava.
Chamava Roxane à velha cama onde dormia.
Chamava Franklin à velha casa onde vivia.
E todas as manhãs saía da Roxane, bebia uma chávena de chocolate no Fred, fechava o Franklin, ia aos correios na Betsy. Estava sempre à espera de uma carta, mas só recebia contas para pagar.
Não recebia cartas porque todos os seus amigos já tinham falecido, o que a deixava preocupada. Não lhe agradava a ideia de ser uma velhinha solitária, sem amigos, sem alguém a quem pudesse recorrer.
Então, começou a dar nomes às coisas. Mas só às coisas que sabia que não iriam acabar. O seu carro Betsy tinha circulado mais do que outro qualquer. A sua cadeira Fred nunca empenou na vida. E nem um rangido, nem um gemido ouviu nunca da sua cama, Roxane. E a sua casa, Franklin, continuava de pedra e cal: com mais de cem anos parecia ter pouco mais de vinte.
A velhinha já não se preocupava em sobreviver a qualquer um deles… e vivia feliz.
Certo dia, estava a tirar lama da Betsy, dizendo-lhe que o Franklin não ia gostar de a ter à porta com os guarda-lamas sujos, quando um cãozinho castanho se aproximou timidamente do portão. (A velhinha não tinha dado nome ao portão porque as dobradiças tinham ferrugem e o portão iria durar pouco tempo.) O cãozinho abanava o rabo e parecia ter fome. A velhinha estava ao lado da Betsy e pôs-se a observá-lo por um momento.
— Hmmm — fez ela.
Então, entrou no Franklin, tirou do frigorífico um pouco de fiambre e saiu novamente. Deu o fiambre ao cachorrinho esfomeado e mandou-o embora.
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Disse-lhe que os cachorrinhos enjoavam sempre na Betsy, que o Fred não permitia que se sentassem nele e a Roxanne era demasiado pequena para um cachorrinho e uma velhinha dormirem nela. E que, além disso, o Franklin era alérgico a pelo de cão.
Por isso o cachorrinho foi-se embora.
Mas, no dia seguinte, regressou. A velhinha estava sentada no Fred a ler um livro sobre flores de jardim, quando olhou pela janela e viu o cachorro.
— Vai para casa! — disse-lhe.
O cachorrinho abanou o rabo quando a viu.
— Vai para casa! — disse novamente.
Mas o cachorrinho continuava a abanar o rabo.
A velhinha reparou que ele ainda parecia ter fome. Por isso foi de novo ao frigorífico.
Deu ao cachorrinho um pouco de queijo e dois biscoitos.
E depois disse-lhe para se ir embora.
E ele assim fez.
Naquela noite, enquanto ajeitava as almofadas na Roxanne, a velhinha pensou no cachorro…. Era um cachorrinho muito simpático e bonito. Mas não podia ficar com ele. Se ficasse, teria de lhe pôr um nome. E ele arriscava-se a não viver tanto como o Franklin, o Fred, a Betsy ou a Roxanne. Muito provavelmente morreria primeiro do que ela… E ela não queria correr esse risco. Não queria ver os seus amigos morrerem.
Pedir-lhe-ia para se ir embora.
Mas todos os dias o cachorrinho castanho vinha até ao portão da velhinha. E todos os dias ela dava-lhe comida e dizia-lhe para não voltar. E ele ia e voltava sempre no dia seguinte.
E assim se passaram muitos meses.
O cachorrinho cresceu, cresceu e, em pouco tempo, deixou de ser um cachorrinho.
Agora era um cão. E continuava a ser um cão sem nome.
Entretanto, a velhinha comprara um armário a que chamou Bill, um carrinho de mão a que pôs o nome Francine e um porco em barro para o jardim a que chamou Bud.
Mas o cão que ela fielmente alimentava todos os dias ao portão não tinha nome.
E, uma vez que não tinha nome, a velhinha não se afligia com ele…
Mas, um dia, o cão castanho não apareceu. A velhinha estava sentada no Fred e passou o dia a olhar para o portão. Mas o cão nunca chegou. E ela ficou triste.
No dia seguinte, o cão também não apareceu. A velhinha pegou na Betsy e foi à procura dele, mas não o encontrou. E ficou ainda mais triste. O cão continuou a não aparecer e a velhinha decidiu que tinha de fazer alguma coisa.
Pegou no telefone e ligou para o canil.
— Apanharam algum cão castanho? — perguntou ao funcionário.
— Temos o canil cheio de cães castanhos, minha senhora, — respondeu-lhe ele. — O seu tinha uma coleira com o nome?
— Não — respondeu a velhinha com tristeza.
E desligou o telefone.
Então sentou-se e pensou no cão castanho que não tinha coleira nem nome.
Onde quer que estivesse, ninguém saberia dizer que ela o esperava todos os dias ao portão; que lhe daria comida e depois lhe diria para se ir embora; que era assim que tudo deveria acontecer.
O tímido cão não tinha coleira nem nome. E ninguém haveria de saber dele.
A velhinha tomou então uma decisão.
Fechou o Franklin e conduziu a Betsy até ao canil. Aí, dirigiu-se ao funcionário.
— Vim buscar o meu cão.
Ele perguntou-lhe de que cor era.
— É castanho — respondeu.
Depois ele quis saber a idade.
— Tem cerca de um ano — respondeu a velhinha.
E ele quis saber qual era o nome dele.
A velhinha pensou durante um instante. Pensou em todos os seus velhos amigos que tinham falecido e lembrou-se dos seus nomes queridos. Como fora feliz por os ter conhecido! E achou que era uma mulher cheia de sorte.
— Chama-se Lucky — disse ao funcionário.
Ele levou-a então a um pátio cheio de cães brancos, pretos e castanhos. A velhinha olhou, olhou e olhou, até que descobriu o seu cão castanho sentado junto do portão. O cão olhava para a Betsy que estava estacionada na entrada.
A velhinha chamou-o.
— Vem, Lucky!
E ao ouvir a voz dela, o cão veio a correr.
A partir daquele dia, Lucky viveu com a velhinha, e vinha sempre quando ouvia o seu nome. Entretanto, descobriu-se que, afinal, nem todos os cães enjoavam na Betsy; que o Fred ficava feliz por o Lucky se sentar nele e que o Franklin não era alérgico a pelo de cão.
E todas as noites a cama Roxanne certificava-se de que havia espaço suficiente para um cão castanho, tímido e feliz … e para uma velhinha que lhe deu um nome.
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Cynthia Rylant
The old woman who named things
New York, Voyager Books, 2000
(Tradução e adaptação)

Não sou um super-herói!


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Tenho seis anos.
Estou no meu quarto.
As paredes são cor de laranja, gosto mesmo dessa cor.
Foi o meu pai que colocou o papel de parede.
A minha mãe costuma gritar muito alto. O meu pai também.
Os gritos fazem-me sempre medo, muito medo.
Ouço outros barulhos, acho que começaram a bater um no outro.
Nunca ouvi a minha mãe gritar assim.
Queria ir lá ver, queria que parassem, mas fico muito quieto na cama.
A minha mãe entra aos gritos no meu quarto, o meu pai veio atrás dela.
Ela quer que eu a proteja.
Ele agarra-a pelos cabelos e começa a puxá-la para fora do quarto.
Ela cai e ele dá-lhe pontapés. Até na cara.
Começo também a gritar.
Quero muito que ele pare, tem de parar!
Por vezes, vou ao parque com o meu pai e jogamos à bola.
O meu pai dá pancadas na bola. Eu sou pequeno e a bola é muito grande.
O meu pai é como esta bola. Tem muita força.
Admiro-o por ser assim, e é assim que quero ser, também.
Costumo rir-me com ele.
Já tenho sete anos e os meus pais divorciaram-se.
A minha mãe explicou-me isso no comboio, quando vínhamos de férias.
O meu pai já não ficará a viver connosco.
Para me consolar, a minha mãe comprou-me um gato.
No entanto, os meus pais continuam a encontrar-se e, uma destas manhãs, estavam umas botas à porta do quarto da minha mãe.
Eram as botas do meu pai.
Eles já não estão juntos, mas eu vejo as botas à porta do quarto.
Saí para a escola, vi as botas, mas não vi o meu pai.
Tenho um medo terrível durante a noite.
Não posso ver a luz do corredor apagada, nem fechar a porta, se não, os monstros aparecem.
Houve uma noite em que vi uma caveira debaixo da minha cama.
A minha mãe contou-me que, quando eu era bebé, alguém me bateu.
Não me lembro disso.
Mas talvez seja essa a razão para eu ter sempre tanto medo.
As armas é que me acalmam e tenho sempre uma pistola de brincar comigo.
Faço de conta que a minha pistola é a sério e que ninguém pode fazer-me mal.
Até tenho uma debaixo da travesseira, como se vê nos filmes da TV.
Na escola disseram à minha mãe que eu não podia ir para as aulas com as minhas pistolas,
e ela proibiu-me de as levar.
Mas eu escondo-as e levo-as na mesma.
O meu pai já tem outra mulher.
Na casa dele, não há quarto para mim. Durmo num colchão a um canto, junto a umas malas vazias.
Aqui, não tenho medo dos monstros, porque eles não têm onde se esconder.
E depois há sempre barulhos e luz.
No meu cantinho, invento histórias terríveis de batalhas com os meus brinquedos.
Há sempre muitos mortos e heróis intocáveis.
Quando fiz nove anos, o meu pai deu-me um robô americano. É o melhor brinquedo do mundo! É muito grande e sai-lhe luz dos olhos e do laser intergaláctico.
Foi comprado numa loja que só vende robôs.
Foi um dia magnífico.
Imagino-me com superpoderes.
Sei voar, sou muito forte e nada me assusta.
Defendo os mais fracos. Todos gostam de mim, exceto, claro, os mesmo muito maus.
Com esses terei de ser muito firme.
De manhã, não vi uma garrafa de vinho vazia.
Ao cair, fez barulho e acordou o meu pai.
Ele ficou furioso e veio para a cozinha atrás de mim.
Tentando escapar-lhe, derrubei outras garrafas. Agora é que vou apanhar.
É assim: às vezes grita e bate-me. Depois fica triste como se lhe doesse a ele, e pede-me desculpa com um ar muito magoado.
Quando o vejo chorar, acho que é por minha causa que ele fica triste.
Então, sinto-me culpado ao vê-lo assim.
Mas não é assim, a culpa não é minha.
Sou apenas uma criança e não tenho nada com os problemas dos adultos.
Gosto dele e não quero magoá-lo, mas ele deixa-me assustado.
Um dia, também hei de ser grande e ninguém poderá magoar-me.
Ninguém me fará medo.
Vou defender todas as mães e todas as crianças…
E, nessa altura,
… Serei um SUPER-HERÓI !
Julien Josset ; Gilles Rapaport
Je ne suis pas un super héros
Paris, Circonflexe, 2004
(Tradução e adaptação)
https://contadoresdestorias.wordpress.com/2015/01/20/nao-sou-um-super-heroi/

 

Um projecto especial


Desejando passar mais tempo com a família, um velho empregado da construção civil informou o dono da empresa onde trabalhava da sua vontade de se reformar. Embora a empresa não fosse afetada por esta saída, o dono sentiu pena de ver um tão bom funcionário partir e pediu-lhe que trabalhasse num último projeto.
O homem concordou mas, como não se sentia entusiasmado com a ideia, construiu uma casa de qualidade inferior, na qual empregou materiais desadequados.
Quando o projeto ficou concluído, o patrão foi fazer a vistoria da casa. Finda a inspeção, entregou a chave da habitação ao empregado e disse:
— Esta casa é para si, como prenda pela sua dedicação de inúmeros anos à empresa.
O empregado ficou deveras surpreendido e pensou para consigo, “Se eu soubesse que a casa iria ser para mim, tê-la-ia construído de forma diferente.”
Muitos de nós vão construindo a sua vida ficando sempre aquém do seu melhor. É com surpresa que nos damos conta, mais tarde, de que temos de viver na casa que construímos.
 Autor Desconhecido
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