terça-feira, 25 de outubro de 2016




A coragem de ter medo



CapaLivroPág.Crianças22Out (p.43)
Começa-se pelo medo do de
CapaLivroPág.Crianças22Out (p.43)sconhecido, entra-se pelo escuro, passa-se pela tempestade, pelo silêncio, pelas alturas, pela dor ou pela diferença. Mas há outros medos explorados neste primeiro livro infantil ilustrado de Rodrigo Abril de Abreu. Estão lá os receios de alguns de nós já adultos e das crianças também.
O livro organiza-se em diálogo, onde à assunção de um medo se segue uma frase que o suaviza e oferece uma nova possibilidade a partir dele. “Tenho medo do desconhecido”, dirá alguém. “O desconhecido é um mundo por explorar”, responderá outro alguém (ou o próprio, se reflectir sobre o que o inquieta). “Tenho medo do escuro.” Resposta: “Aí nascem as estrelas.” Ou ainda: “Tenho medo de tempestades.” Reflexão: “Revelam o teu porto de abrigo.”
O autor, formado em Engenharia Física e doutorado em Neurociências pela Fundação Champalimaud, disse ao PÚBLICO que não pretende “dar lições”, mas tão-só “levar as pessoas a olharem o medo de outra maneira”. Diz ser fascinado por comportamentos sociais e emoções e pensa que muita gente “tem medo de livros sobre o medo”. Revela ainda: “Aqui estão os meus medos e a forma como os vejo.”
Autodidacta, 39 anos, criou este livro durante uma formação no atelier/casa de Nic e Inês: Livro Ilustrado — Do Mundo Manual ao Processo Digital. “Não tinha pensado em editá-lo, mas os meus formadores sugeriram-me e incentivaram-me”, conta. Enviou a obra para algumas editoras e a resposta positiva da Editorial Presença foi a mais rápida. O livro foi publicado.
Processo de trabalho_n
Para as ilustrações, usou canetas, aguarelas e recortes. Contou ainda com a ajuda do irmão, um pouco mais novo, João Abril de Abreu, que fotografou as ilustrações com as sombras das mãos do autor, que percorrem todo o livro, numa espécie de entidade protectora.
O resultado é um livro envolvente, que não assusta, antes desafia a olhar os medos de uma perspectiva encorajadora e feliz, tanto quanto possível. O autor volta a sublinhar que esta é uma versão possível de se lidar com os medos. Certo de que haverá muitas outras. “Esta é a minha. É assim que eu vejo os medos.”
Durante o doutoramento, Rodrigo Abril de Abreu desenvolveu projectos de comunicação e educação de ciência e explorou música, teatro, desenho e ilustração. No seu perfil de Facebook, diz-se “empenhado em intersectar arte, ciência e comunicação, esperando encontrar novas formas de melhorar o pensamento crítico, consciência social e os comportamentos pró-sociais na sociedade”. Parece estar no caminho certo.
Processo2_n
Voltando ao livro: “Tenho medo de ser pequeno.” “Só precisas de um coração grande.” E também: “Tenho medo de ser diferente.” “Ser diferente é ser como toda a gente.”
Até os mais receosos da inevitável chegada do fim ficarão a saber que este pode ser encarado como “um novo começo”. Temos mais coragem do que sabemos.
Medo do Quê?
Texto e ilustração: 
Rodrigo Abril de Abreu 

Fotografia: João Abril de Abreu
Edição Editorial Presença
40 págs., 10,50€
in: http://blogues.publico.pt/letrapequena/

O ladrão de bolachas

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Um dia, uma senhora teve de ficar à espera num aeroporto porque o voo tinha algumas horas de atraso. Foi a uma das lojas à procura de um livro, e comprou também um saquinho de bolachas. Depois, sentou-se a ler.
Apesar de estar envolvida na leitura, apercebeu-se de que o homem sentado ao seu lado, atrevido até mais não, tinha tirado uma ou duas bolachas do saquinho que estava pousado entre os dois. Mas, para evitar uma cena lastimável, decidiu fazer vista grossa.
Entretanto, enquanto a senhora continuava a ler, comia bolachas e vigiava a partida dos aviões, o “ladrão de bolachas” ia devorando as suas provisões… Mas, à medida que o tempo passava, ela ficava cada vez mais irritada e pensava: “Se eu não fosse como sou, pregava-lhe uma bofetada.” Cada vez que ela pegava numa bolacha, o homem, desavergonhado, servia-se também! Quando já só sobrava uma, ela interrogou-se sobre qual iria ser a reação dele.
Com um ar satisfeito, e um pequeno sorriso algo nervoso, ele pegou na última bolacha e partiu-a a meio. E, enquanto comia uma metade, ofereceu-lhe a outra. Tirando-lha da mão, a senhora pensou com os seus botões: “Não acredito! Este homem é mesmo atrevido e mal‑educado. Nem sequer me agradece!”
Não se lembrava de alguma vez ter ficado tão enfurecida! Por isso, quando o seu voo foi anunciado, suspirou de alívio. Juntou os seus pertences e pôs-se a caminho do avião sem sequer olhar para o ingrato ladrão.
Já a bordo e confortavelmente instalada, procurou o livro que estava quase a acabar de ler. Foi então que, ao remexer no saco, ficou boquiaberta. As suas bolachas continuavam ali, debaixo dos seus olhos espantados. “Se as minhas bolachas estão aqui”, pensou, desesperada, “então, as outras eram dele e ele aceitou partilhá-las!”
Tarde demais para pedir desculpa. Muito triste e arrependida, compreendeu então que a mal-educada, a ingrata e a “ladra” tinha sido ela!
Valerie Cox
in: contadoresdestorias.wordpress.com



A coragem de ter medo


CapaLivroPág.Crianças22Out (p.43)
Começa-se pelo medo do desconhecido, entra-se pelo escuro, passa-se pela tempestade, pelo silêncio, pelas alturas, pela dor ou pela diferença. Mas há outros medos explorados neste primeiro livro infantil ilustrado de Rodrigo Abril de Abreu. Estão lá os receios de alguns de nós já adultos e das crianças também.
O livro organiza-se em diálogo, onde à assunção de um medo se segue uma frase que o suaviza e oferece uma nova possibilidade a partir dele. “Tenho medo do desconhecido”, dirá alguém. “O desconhecido é um mundo por explorar”, responderá outro alguém (ou o próprio, se reflectir sobre o que o inquieta). “Tenho medo do escuro.” Resposta: “Aí nascem as estrelas.” Ou ainda: “Tenho medo de tempestades.” Reflexão: “Revelam o teu porto de abrigo.”
O autor, formado em Engenharia Física e doutorado em Neurociências pela Fundação Champalimaud, disse ao PÚBLICO que não pretende “dar lições”, mas tão-só “levar as pessoas a olharem o medo de outra maneira”. Diz ser fascinado por comportamentos sociais e emoções e pensa que muita gente “tem medo de livros sobre o medo”. Revela ainda: “Aqui estão os meus medos e a forma como os vejo.”
Autodidacta, 39 anos, criou este livro durante uma formação no atelier/casa de Nic e Inês: Livro Ilustrado — Do Mundo Manual ao Processo Digital. “Não tinha pensado em editá-lo, mas os meus formadores sugeriram-me e incentivaram-me”, conta. Enviou a obra para algumas editoras e a resposta positiva da Editorial Presença foi a mais rápida. O livro foi publicado.
Processo de trabalho_n
Para as ilustrações, usou canetas, aguarelas e recortes. Contou ainda com a ajuda do irmão, um pouco mais novo, João Abril de Abreu, que fotografou as ilustrações com as sombras das mãos do autor, que percorrem todo o livro, numa espécie de entidade protectora.
O resultado é um livro envolvente, que não assusta, antes desafia a olhar os medos de uma perspectiva encorajadora e feliz, tanto quanto possível. O autor volta a sublinhar que esta é uma versão possível de se lidar com os medos. Certo de que haverá muitas outras. “Esta é a minha. É assim que eu vejo os medos.”
Durante o doutoramento, Rodrigo Abril de Abreu desenvolveu projectos de comunicação e educação de ciência e explorou música, teatro, desenho e ilustração. No seu perfil de Facebook, diz-se “empenhado em intersectar arte, ciência e comunicação, esperando encontrar novas formas de melhorar o pensamento crítico, consciência social e os comportamentos pró-sociais na sociedade”. Parece estar no caminho certo.
Processo2_n
Voltando ao livro: “Tenho medo de ser pequeno.” “Só precisas de um coração grande.” E também: “Tenho medo de ser diferente.” “Ser diferente é ser como toda a gente.”
Até os mais receosos da inevitável chegada do fim ficarão a saber que este pode ser encarado como “um novo começo”. Temos mais coragem do que sabemos.
Medo do Quê?
Texto e ilustração: 
Rodrigo Abril de Abreu 

Fotografia: João Abril de Abreu
Edição Editorial Presença
40 págs., 10,50€
(Texto divulgado na edição do Público de 22 de Outubro, na página Crianças. Retirado de: http://blogues.publico.pt/letrapequena/)

Acredita


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Era uma vez uma senhora que tinha três cães. Um era já velhote. Outro, assim assim. O terceiro era um cachorro ladino, que nunca estava quieto.
Os três da mesma raça. Não me perguntem qual, porque nisso de marcas de cães e raças de automóveis – perdão! – de raças de cães e marcas de automóveis sou muito ignorante.
O cão velho, deitado no capacho da entrada, vendo o mais novo a correr atrás de uma aranha, de uma borboleta, até da própria sombra, comentava para o cão do meio:
– Também já fui assim.
– Não acredito – latia o cachorrinho, sem deixar de correr. – Tu nunca brincaste.
– Brinquei, podes estar certo. E, às vezes, ainda me apetece. Se não me sentisse tão pesado, ainda te apanhava.
– Não acredito – insistia o cachorrinho, de riso nos dentes muito brancos.
– Mas deves acreditar – aconselhou o cão do meio. – Nós que somos mais velhos, já fomos tão ligeiros como tu.
– Não acredito – teimava o cachorrinho, sempre a correr.
– Como é que havemos de convencê-lo que já passámos pela idade dele e que ele há de chegar à nossa? – perguntou o cão do meio ao cão mais velho.
– Vai ser difícil – concluiu o cão velhote, sem se despegar do capacho.
A senhora, dona dos três cães, que toda esta conversa ouvira ou adivinhara, trouxe um álbum de fotografias, poisou o cachorrinho no colo e mostrou-lhe:
– Este é o retrato do velho Piloto, quando ainda só comia sopinhas de leite. A fotografia está tremida, porque ele era um vivo demónio. Nunca se cansava de correr.
– Não acredito – protestava o cachorrinho, no colo da dona.
Páginas adiante, a senhora apontou outro cãozinho de grandes olhos brilhantes e orelhas espetadas:
– Este é o Xana, quando veio cá para casa, dentro de um cestinho. Era um brincalhão.
– Não acredito – esbraveja o cachorro, no colo da dona.
E sem querer saber de mais histórias antigas, o cãozinho soltou-se das mãos da dona e desatou a correr.
Não acreditava, não acreditava, não acreditava que aqueles dois canzarrões sisudos, muito dignamente sentados nas patas traseiras, já tivessem sido como ele. Era mentira. Era impossível. Era um disparate. Não acreditava, pronto.
Mas, com o tempo, acabou por acreditar…
António Torrado

in contadoresdestorias.wordpress.com

sexta-feira, 30 de setembro de 2016

Obrigada por não me empurrares

As minhas pernas andavam para a frente e para trás. Embora estivesse a usar toda a força que tinha para que o meu baloiço chegasse ao céu, estava muito longe de o conseguir.
— Mãe, podes empurrar-me outra vez?
— Não, filha. Eu sei que consegues chegar mais alto. Concentra-te e continua a usar as tuas pernas.
Olhei em volta e vi todas as outras mães e pais do parque a empurrar os filhos, sob o calor escaldante de junho. Perguntei-me por que razão a minha mãe não fazia o mesmo. Não que lho fosse perguntar. Temia bem aquele olhar que os pais lançam aos filhos, quando acham que a sua autoridade está a ser questionada.
— Está bem — resmunguei.
Embora eu não acreditasse na força das minhas pernas, a minha mãe parecia ter muita confiança nelas. Coloquei as mãos em volta das correntes de metal, pus-me em posição, balancei para trás e lá continuei.
— Continua a balançar as pernas, filha! Tu consegues! — encorajou-me ela.
Parecia querer o meu sucesso mais do que eu mesma. Como não queria desapontá-‑la, lá me esforcei. Acabei por chegar tão perto do céu que os meus pés já tocavam as nuvens. Sorri abertamente ao ver que tinha conseguido o impossível. Tinha conseguido voar.
Saltei do baloiço e enterrei os pés na areia quente.
— Viste o que eu fiz, mãe? Viste?
— Claro que vi. Estive sempre a olhar para ti.
Naquela altura, não compreendia por que motivo a minha mãe queria que eu fizesse tudo sozinha. Se eu não conseguia balançar mais alto, porque não me empurrava ela?
Ao longo dos anos, a minha mãe deu-me o maior presente que um pai ou mãe podem dar aos filhos: um amor exigente, liberdade e independência. Ensinou-me a enfrentar os desafios sozinha. Preparou-me para o meu futuro. E mostrou sempre muita empatia e amor por mim, ao mesmo que tempo que fazia de minha professora e melhor amiga, e ainda de pai e de mãe.
De cada vez que ouvia as palavras “Não consigo”, sorria, porque sabia que eu conseguia. Se ela tivesse empurrado o meu baloiço, eu nunca teria saltado dele sentindo-‑me tão maravilhosamente capaz.
Christy Barge

sexta-feira, 16 de setembro de 2016

Uma mudança para melhor

Desde pequena que me diziam para não cometer os erros da minha mãe. É certo que ela não tinha tido uma vida fácil: Engravidara aos 17 anos e culpavame constantemente pelos fracassos da sua vida. Como era incapaz de tomar conta de mim, tiveram de ser os meus avós a ir buscarme quando eu tinha seis semanas e a criarme como se fosse filha deles.
Eu era muito boa aluna na escola e tinha uma relação fantástica com os meus avós. Até que descobri, no 8º ano, que ficar na rua com os amigos até tarde era mais divertido do que ir para casa. Depressa perdi o interesse pelos estudos e deixei de ir à escola. As minhas notas baixaram e fui suspensa por faltar às aulas e por desrespeito para com os professores. Comecei a drogar-me e fugia constantemente para ir a festas. Vestiame toda de preto e tinha comportamentos detestáveis. A minha vida estava totalmente descontrolada.
Os meus avós não conseguiam continuar a assistir à minha autodestruição. A minha vida não se orientava no bom sentido e, pior do que isso, a minha indiferença perante o caos em que tinha mergulhado não me afligia. Depois de se ter demitido de mim durante catorze anos, a minha mãe decidiu ajudarme. Via que me estava a tornar no que ela fora, o que lhe custava sobremaneira, e levoume a um centro de desintoxicação para raparigas.
No centro disseram que eu era uma boa candidata ao programa, mas que tinha de provar estar disposta a seguir as regras que me fossem impostas. Situado no meio de uma agradável zona residencial suburbana, o centro contava com apoio psicológico qualificado, que em muito nos ajudava a alterar os nossos comportamentos autodestrutivos. Também nos era exigido que fôssemos à escola e que fizéssemos serviço comunitário.
As portas não estavam fechadas e eu podia sair quando quisesse. No entanto, não me receberiam de volta se o fizesse. A minha terapeuta disseme que os psicólogos estavam lá para me ajudar, mas que a decisão de me deixar ajudar caberia apenas a mim. Como já não gostava do que via ao espelho e não queria magoar mais a minha família, decidi mudar.
Comecei a dedicarme de novo aos estudos e a participar ativamente nas sessões de terapia. Estabeleci boas relações com as outras raparigas, com quem partilhava atividades divertidas e visitas de estudo interessantes. Aprendi novamente a tirar partido da vida sem recorrer a substâncias. Enquanto lá permaneci, melhorei o meu relacionamento com a minha mãe e os meus avós.
Muito disto deveu-se à minha terapeuta. Era uma mulher fantástica, que me ajudou a compreender muitos dos meus problemas e a curar algumas das feridas que eu tinha infligido à minha família e a mim mesma. Mostroume, sobretudo, que se eu quisesse mesmo ser bemsucedida na vida, sêloia.
Quando terminei o secundário, fui para a escola de enfermagem veterinária. Casei nova, com o meu namorado de sempre, e comprei uma casa. Tudo isto antes de fazer 25 anos. Fui capaz de realizar todos os sonhos que a minha mãe tivera para si mesma e para mim.
Sei que há muitas adolescentes que estão em situações semelhantes àquela em que eu estive, ou até piores. Se lhes pudesse dizer algo, seria que podem ser bemsucedidas se acreditarem nelas próprias.
Podemos sempre mudar para melhor.
A prova disso sou eu.
Megan WatermanFouch

segunda-feira, 4 de janeiro de 2016



As minhas férias


 



As minhas férias foram em casa dos meus avós. Todos os anos as minhas férias são lá. A casa dos meus avós é grande mas parece um bocadinho pequena. Tem umas escadas e uma cave e muito mais quartos que a nossa casa, mas tudo parece um bocadinho mais baixo e apertado. Uma vez caí das escadas e não me magoei nem nada. Mas isso foi quando eu só tinha cinco anos. Nessa altura eu não sabia escrever nem nada porque ainda estava na infantil e agora até subo dois degraus de cada vez e as pessoas dizem que eu sou muito mexido. O meu avô até me disse que eu era um super-herói. Disse assim: ah, és tu, Filipe! Achei que era um super-herói que nos tinha entrado em casa. O meu avô gosta muito de super-heróis ou pelo menos é o que eu acho porque ele está sempre a falar-me deles. À mesa, quando os outros crescidos começam a ter conversas diferentes assim mais sérias e isso, o meu avô fica calado que nem um rato, que é como diz a minha avó, e depois só diz uma coisa ou outra quando lhe apetece ou quando se lembra de uma história divertida e então dá gargalhadas muito altas, mas não altas como quando às vezes ralham alto connosco e sim altas de fazer uma espécie de cócegas na nossa boca e termos de rir também e também alto como ele. As pessoas crescidas normalmente são diferentes. As pessoas crescidas normalmente não se riem ou riem-se de coisas que não têm graça nenhuma, pelo menos eu não acho, e às vezes param mesmo de rir a meio do riso como se uma gargalhada fosse uma coisa feia ou um palavrão muito mau. As pessoas crescidas não são nada como o meu avô. O meu avô é assim mais redondo e às vezes até parece que vai tropeçar e tudo. Mesmo quando está calado ou a dormir na poltrona castanha o meu avô não é nada sério e, como eu costumo dizer, isso é muito positivo. As pessoas crescidas normalmente não são nada positivas. As pessoas crescidas normalmente são muito levantadas e direitas e fazem lembrar árvores daquelas que estão sempre num conjunto de árvores e são muito iguais às outras todas, como os eucaliptos por exemplo. Um dia o meu pai foi comigo à mata que é como nós chamamos a uma floresta que há lá ao pé da casa dos meus avós, para aí a uns 2 km ou 3 km, e mostrou-me o que eram eucaliptos. Disse assim: estás a ver, Filipe? Isto aqui são eucaliptos. Eucaliptos. Mas nessa altura eu era muito pequenino e tinha mais ou menos quatro anos e por isso ainda não sabia dizer eucaliptos. Dizia de uma maneira diferente e engraçada mas agora já não me lembro. já passou muito tempo porque isto foi quando eu ainda era um bebé. Aos seis anos é a idade em que se fica mais crescido e eu já estou quase a fazer sete por isso vou rebentar a escala e claro já não sou um bebé.

Quando começam as férias vamos de carro para casa dos meus avós. E quando as férias acabam vimos para nossa casa também de carro, é só fazer o caminho todo ao contrário, mas por acaso às vezes parece mesmo que é outra estrada e que não foi por ali que viemos e nessas alturas eu penso para onde é que estamos a ir? Os meus avós são os pais da minha mãe. Os pais do meu pai morreram antes de eu nascer ou então quando eu era tão pequeno que não me lembro das caras deles. Um tio meu também morreu há pouco tempo e eu lembro-me muito bem da cara dele. A minha mãe disse-me que ele tinha subido para o céu porque era uma pessoa boa e então eu perguntei à minha mãe o que é que acontecia às pessoas que não eram tão boas e a minha mãe disse-me que também iam para o céu e depois eu ganhei coragem e perguntei-lhe e o que é que acontece às más? E a minha mãe disse que todas iam para o céu e eu aprendi isso. Deve ser bom estar no céu e passar por cima dos automóveis, principalmente quando está muito trânsito e as pessoas já estão chateadas de estar ali. A minha avó diz: não se diz chateadas, diz-se aborrecidas. Está bem, Filipe? Está bem, avó. A minha avó quer sempre que eu coma mais e às vezes ri -se de coisas que eu digo sem ser para rir e eu fico contente e depois volto a dizer essas coisas mas normalmente à segunda vez a minha avó já se ri com menos vontade. A minha avó diz que eu sou muito engraçado. Outras vezes diz que eu sou esperto mas não caço ratos. A minha avó não gosta nada de ratos mas está sempre a falar neles. Na casa dos meus avós não me deixam entrar na cave quando põem veneno para os ratos em cima de folhas de jornal debaixo das mesas e dos armários porque têm medo que eu prove daquilo e me transforme num rato. Mas eu acho que é tudo uma maluquice porque eu nunca vi nenhum rato. Devia ser engraçado se eu um dia me transformasse num rato. Podia pregar sustos à minha mãe e ao meu pai e principalmente à minha avó. Só o meu avô é que de certezinha não se ia assustar. Ia olhar para mim, fazer-me uma festa no pêlo, porque se eu fosse um rato em vez de cabelo tinha pêlo, e depois dizia-me: ah, és tu, Filipe! Achei que era um ratito que nos tinha entrado em casa. O meu avô diz que vê mal e tem uns óculos e tudo mas é tudo a fingir porque ele vê melhor até do que todos da casa. Até vê coisas que mais ninguém viu, como por exemplo o super-herói que ele encontrou de noite na cozinha e que lhe contou que havia um menino chamado Filipe que estava a dormir e que ia ser também um super-herói quando crescesse e ao almoço o meu avô contou-me isto tudo e disse que o super-herói tinha uma capa dourada e que saiu a voar pela janela e eu fiquei contente e nem me importei de estar a chover e a minha mãe não me deixar ir lá para fora. O barulho da chuva faz sono e quando eu não estou com sono isso é mau, pelo menos eu não gosto nada. Mas nesse dia até foi bom, porque o meu avô contou-me muitas histórias e depois eu fiz desenhos por causa das histórias que ele me contou e de outras coisas que eu pensei e imaginei. O meu avô sabe mais histórias que eu sei lá o quê. A minha preferida é a da barata moderna. Eu vou contar: era uma vez uma barata que era uma barata moderna. Eu não sabia o que é que era moderna e o meu avô explicou-me que queria dizer que a barata andava de patins, mini-saia e óculos escuros e no fim de cada frase dizia sempre oh yeah, como se estivesse a cantar. Um belo dia a barata foi apanhada numa banheira por uma senhora humana que queria tomar um duche e não gostava nada de baratas. A senhora humana olhou para ela e disse: já para fora da minha banheira e da minha casa! Mas a barata, que como me contou o meu avô além de moderna era respondona, disse-lhe: não vou, esta casa é tanto minha como tua. E a banheira também! A barata fez uma voz grossa e a senhora humana ficou zangada com as sobrancelhas em zê e a bufar como um touro malvado e sem saber o que fazer e saiu da casa-de-banho e foi buscar ajuda. Voltou com um senhor humano que era o marido. O marido olhou para a barata moderna, tirou o sapato e disse: isto resolve-se já. Mas ao ver isto a mulher, que não gostava de baratas mas também era um bocadinho simpática, começou a gritar: não, não! Oh não! Não a vais matar! Não a vais matar! Vai-te embora! E o marido foi-se embora porque os gritos da mulher eram muito altos e muito fininhos. E no fim de contas a barata e a mulher passaram a dividir a banheira e passou o tempo e a mulher ficou um bocadinho mais moderna e a dizer oh yeah de vez em quando e a barata ficou muito agradecida por ela não ter deixado que o marido a matasse com a sola do sapato. O meu avô conta esta história e depois às vezes muda coisas e eu digo que não era assim e depois conto eu ao meu avô como é que é a história e então depois ele conta-me a história outra vez mas como deve ser e é muito engraçado e não é nada como as coisas que eu digo sem querer e que têm graça da primeira vez e da segunda já não.

Nas férias também vamos a outros lugares, como por exemplo à vila. Na vila há uma praça principal sem nada de especial e lá há um café onde vamos sempre comprar pão-de-ló e outras coisas, como biscoitos e bolos-de-arroz, e eu para mim peço guarda-chuvas ou cigarros de chocolate. Gosto mais dos guarda-chuvas porque são maiores e têm mais chocolate mas os cigarros dão mais estilo. Às vezes chove na vila. Saímos de casa e o céu está cinzento e branco mas está tudo seco e eu já sei que quando chegarmos à vila vai começar a chover porque é sempre assim. Acho que é porque o chão da vila é feito de pedras grandes e a chuva faz lá um barulho a cair que parece mesmo feito para ser assim. A chuva é quando uma nuvem choca com outra, que eu uma vez perguntei ao meu pai e ele disse-me. As pessoas mortas que estão no céu é que devem passar o tempo a ver essas coisas das nuvens. Quando estão nuvens eu percebo onde é que as pessoas se seguram e põem os pés, porque podem pôr-se em cima das nuvens e nós não as vemos porque estamos a olhar assim um bocadinho de baixo e elas estão do outro lado, mas quando está céu azul não percebo muito bem, a não ser que estejam atrás de um pano azul ou então que fiquem invisíveis com super-poderes. Uma coisa que eu gosto na vila é a papelaria onde o meu pai compra os jornais porque lá há muitos livros de quadradinhos e às vezes o meu pai dá-me dois de uma vez. Na vila há um rio e uma ponte e uma rua cheia de árvores. E agora há umas casas novas que são feias, pelo menos é o que a minha mãe acha porque elas têm umas cores assim nada sérias. Passamos sempre por elas quando saímos da vila de volta para nossa casa, quer dizer para casa dos meus avós. Quando fica noite eu não tenho medo nem nada.

De noite tudo é mais esquisito. Um dia acordei de noite e o quarto estava todo inclinado e eu era uma espécie de homem invisível. Levantei-me da cama e abri a porta sem os meus pais acordarem, mas também mesmo que acordassem não me viam porque eu estava todo transparente e invisível. Fui pelo corredor muito devagarinho. No corredor havia uma escuridão e não se via nada. Eu sabia que a casa-de-banho era no fundo à esquerda mas de repente tudo estava diferente e agora eu já estava um bocado sem saber o caminho e o pior é que também já não sabia voltar para trás para acordar a minha mãe. Parei e então apareceram as moscas que costumam estar no vidro da janela da cozinha. Vinham sem fazer aquele barulho que normalmente fazem e eram maiores, do tamanho de passarinhos pequenos, e estavam muito chateadas e começaram a ir contra a minha cara. Como eu estava invisível, elas não me deviam ver e então chocavam contra a minha cara e as asas esquisitas delas faziam-me impressão no nariz e nas pestanas e na boca. Estava tudo escuro e eu não conseguia sair dali. E depois as moscas fizeram um buraco na minha cara e começaram a passar muitas,muitas, muitas. O buraco ainda era mais escuro do que o resto e elas voavam muito rápido com as asas a bater sem parar. E eu estava quase a chorar porque o buraco fazia-me nojo e as moscas doíam. E então chorei e a minha mãe veio a correr e disse-me que não era nada, que já tinha passado. Disse assim: pronto, Filipe, já passou, já passou. E a minha mãe tinha razão porque nessa altura eu pus a mão na cara e já não estava lá o buraco.

A seguir de manhã já não havia problemas mas eu também já não estava invisível e por isso a minha avó viu-me quando eu fui à gaveta dos chocolates e disse-me que agora mais chocolates não porque senão eu não comia nada ao almoço. Na casa dos meus avós os almoços são coisas muito importantes. Há guardanapos a sério que não são de papel nem nada e talheres pesados. Todas as pessoas se sentam à mesma hora e o meu avô conta histórias engraçadas e toda a gente se ri e isso é muito positivo, como eu costumo dizer. Nos almoços em casa dos meus avós há sempre sopa e de sobremesa eu às vezes como uma banana à macaco, que é o que nós chamamos a uma banana inteirinha com a casca descascada à mão para baixo. Uma coisa que eu gosto de fazer a seguir ao almoço é corridas de carrinhos. Os crescidos normalmente ficam muito tempo sentados a falar e a tomar café e eu então vou buscar os meus carrinhos e faço corridas no tapete. Só faço corridas com quatro, que são o porche-prateado, o roles-róice, o mini-cuper e o jipe-descapotável. O meu preferido é o porche-prateado e é ele que ganha quase sempre ou mesmo sempre. Mas às vezes é por pouco. O mini-cuper também é bom. Eu achava que era só um mini mas o meu pai é que me disse que era um mini-cuper e que ele até tinha tido um antes de eu nascer e que era um carro bom e eu aprendi isso. As corridas são no tapete entre duas riscas grossas que há a toda a volta e que fazem uma espécie de estrada ou pista. As curvas é que são difíceis como tudo. E as regras são que se um carro sai fora das riscas grossas volta para onde estava e se bate noutro fica atrás dele um palmo esticado do dedo mindinho até ao dedo polegar. Às vezes os carros vão e batem nos pés das pessoas crescidas e nessa altura repete-se. Uma vez o mini-cuper passou por dentro do sapato da minha tia, por dentro quer dizer entre o salto alto e o resto do sapato, como se fosse um túnel ou uma porta ou assim. O porche-prateado ganha porque é melhor nas curvas que são muito complicadas porque viram muito e é difícil os carros não saírem para fora das riscas lá. Quando um carro sai do tapete para o chão de madeira faz um barulho e nessa altura as pessoas dão conta que eu estou ali a brincar. Dizem assim: lá está ele com os carros. Ou então: quem é que está a ganhar, Filipe? E eu digo, e pronto. Um dia os meus tios não estavam lá e os meus avós também saíram para ir não sei onde e a minha mãe e o meu pai zangaram-se e eu fiquei espantado porque eles estavam a falar alto e com força, mas depois o meu pai disse olha o miúdo e os dois calaram-se. Mas no dia seguinte já estavam amigos e eu fiquei contente. Até fui com o meu pai lá para fora para ele me ensinar a andar de bicicleta e foi muito divertido e passámos pela mata mas não foi dessa vez que ele me ensinou o que eram eucaliptos, isso foi há mais tempo. Mas no muro de pedra que há no caminho para lá vimos um lagarto e o meu pai disse que aquele era dos grandes e quando voltámos para casa eu contei à minha mãe e depois fiz desenhos de lagartos muito grandes mas inventei os olhos porque não me lembrava como é que eram os olhos de verdade dele mas também não fez mal. Quando está bem disposto o meu avô diz: sonhar é bom. Mas em vez de dizer bom diz bão: sonhar é bão, sonhar é bão. E diz aquilo muitas vezes e a minha avó gosta. Outra coisa que a minha avó gosta é de estar ao pé da lareira assim a aquecer-se sentada e sem fazer nada. Eu também gosto mas não aguento tanto tempo como ela. Começo a olhar para o fogo e é bom mas depois doem-me os olhos e fico com uma espécie de comichão mesmo no olho onde está a pintinha preta e a bolinha da cor e lá não se pode coçar. Uma vez deitei um boneco que se tinha partido para a lareira e a minha tia disse que aquilo não se fazia porque era plástico e o plástico não se podia deitar no fogo porque cheirava mal e eu não fiz mais aquilo mas na altura gostei de ver o boneco com um braço a arder separado dele e ele a mexer-se sozinho pela primeira vez antes de desaparecer todo puxado para o meio. Depois é triste é quando vamos embora. Temos de arrumar tudo e pôr as malas no carro e os meus avós ficam com água nos olhos no tal sítio das pintas e das cores onde não se pode coçar. Este ano foi bom porque eu adormeci e a viagem foi mais rápida que sei lá o quê. E mesmo quando acordei foi como se ainda estivesse a dormir porque de repente estava tudo muito noite e nós estávamos a passar ao pé de uma coisa muito grande que parecia uma nave espacial poisada ali como um passarinho cheiinho de luzes brancas bonitas e o meu pai disse-me que era uma fábrica mas eu acho que ele se enganou, a não ser que fosse uma fábrica de super-heróis, e depois foi bom chegar e estar na minha cama a dormir. Normalmente as pessoas dizem que dormem de olhos fechados mas eu durmo de olhos abertos, senão como é que vejo tantas coisas? Agora já acordei e estou aqui sentado a escrever esta redacção sobre as férias. As minhas férias foram assim.